sábado, 5 de dezembro de 2009

Em Pulsos

Tropeço na contramão do desejo. Não cedo. Raspo o toco de unha na pele que esfarinha nos meus olhos ardentes. Por dentro, a terra é mais grossa, os lábios trincam de sede. Paro para conversar e distrair o anseio, a lua não me responde, calada, afirma tudo. Sem resposta a deixo nas minhas costas, ela sorri sarcástica por detrás de uma nuvem rala e escura. Volto calmo tateando os ladrilhos gelados pelo corredor, tento olhar as horas em vão, nada conheço de ponteiros, para muitos o compasso da respiração vem dali, o pulso de um peito é marcado pelo pulso de um segundo, eles dizem, não acredito.

Pois foi quando tudo parou. A batida acabou e os ponteiros desapareceram de todos os relógios. Quem marcou as horas? Minha respiração desalinhou, meu peito atrasou. Em desacordo, me equilibro no fio do telefone que diz que Maria se matou.

- Maria?
- Mas é. Maria está aqui, morta, com os pulsos cortados, apagada de vez. Pura carne branca apodrecida há três dias.
- Quantos?
- Três dias.
Três dias se passaram?
- É, Jorge. 1,2,3 dias, rapaz!
- Mas espera aí, o senhor se enganou, eu não me chamo Jorge e não conheço nenhuma Maria. Por favor, disca o número certo. Preciso dormir.
- AH...

Sempre alguém atrás desse Jorge que desconheço. Não habituado as falhas humanos, não existo para o mundo. Sempre por detrás de uma capa, de um aquário, de algum olho de chumbo que não entende nada. Será preciso largar o copo d’água gelado, nesse ar condicionado a menos graus. Preciso sim é ir dormir. Prender os pensamentos na geladeira. Enfim.

Clarice me observa, ela toma café e fuma o seu cigarro não mais vendido. Seu olhar é tão fino quanto à ponta de um bisturi, ela abre a minha pele sem pressa, aproveitando cada lasca nova que surge com cada novo coágulo de sangue que descansado aglomera numa poça em meus pés. Para cada nova camada, um piscar de olhos seus. Me desfragmenta até o osso sorrindo com cinzas nos lábios. Me coloca ali dentro do seu café e na fumaça do cigarro. Acordo assustado. Já devo ir.

E vou. Enfim arrebento o nó do cadeado e saio. Me esbarro no primeiro que vejo, jogo no chão e passo por cima. Não me mexo. Continuo. Sento no último banco enquanto me guiam até o próximo ponto já marcado sem saber para onde vou. Eu sei. Finjo não saber para conseguir aprofundar. Logo vejo: Com uma bengala, de leve analisa o alicerce em cerâmica, já sentindo o vazio oco que também é ali embaixo, recolhe-se com medo para dentro, deixando a bengala do lado de fora. Dele, apanho as rosas sozinhas da varanda, retiro as mais belas que já amarradas com a fita do cabelo da menina tem destino certo. Logo chego.

E meus ombros já pesam toneladas. Pesam mais com o cheiro de rosas por aqui. Já despedaçadas dormindo no chão, tão frágeis não agüentaram os gritos de amor. Que ela, vagabunda, fazia quando entre as pernas dele se fodia, fodia toda, gritava alto para agradar, palavras duras em cueca samba canção, segurando firme no cacete, engolindo tudo, pedindo mais, não para, para isso não, não para e não com ele. Se não tivesse luz em seus olhos, se o seu corpo não correspondesse aos toques e aos pedidos infame desse que ela também chamava de Jorge.

Lágrimas escorrendo no ralo do banheiro, mais uma vez, florais azuis no azulejo, retiro o relógio do bolso, escuto a porta bater, ele sai com papéis rabiscados no bolso direito. Entro nos olhos de Maria. Assustada, ela tenta se esquivar com suas gigantes pálpebras mesmo assim já estou lá dentro da caverna que a esconde.

A coloco em cruz amarrada na cama. Do que restou das pétalas colho os espinhos no seu pescoço amaciado com as mordidas do outro. Reencontro com o bisturi e firme abro o pulso que encontra a primeira, segunda, todas as veias grandes que não agüentam o peso do corte mais fino. Observo a veia se partindo em suas lágrimas de nenhuma dor. Quão mais o bisturi aprofunda o corte mais em cor a sua face perdia e mais lúcido se tornava o nosso romance. Agora, com as vistas oscilando, se desequilibra no tempo, alcanço o segundo pulso já mais frio. Então abro, ela tenta falar algo, mas já não sabe o que junta sentido em palavra e já escreve poemas na nuvem de suas vistas. Por fim, se despede do meu toque como alguém rendida ao primeiro mar depois de atravessar um deserto. Me despeço do último corte, o que se faz aqui no meu peito.

Borro o fim com a primeira lágrima, em cada dedo da mão um anel de dor brilha no escuro de um quarto vazio, não tão vazio quanto parece. Jorge me observa no canto, seu cabelo desgrenhado, cigarrinho de palha e lógico sua bebida batizada com as chagas de cristo ele diz, e ri, ri de mim que só aceito a máquina de escrever anulando a sua presença. Não, ele não, desdenha de tudo e não faz nada, vive, come umas putas e fica por isso mesmo. Sopra no meu ouvido tudo o que viu e sentiu, deixa bem claro todas as cicatrizes, enquanto eu bato o dedo na máquina que já respira e poderia muito bem escrever sozinha. Sozinha. Só. Foi quando Jorge me tomou a máquina e eu pulei da janela.

Corpo estirado na última linha.

10 comentários:

  1. Não sei se faço questão de ligar acidentalmente e fpedir para falar com Jorge.
    Minha opinião é sempre a mesma, nunca muda. Você é o melhor escritor desconhecido que eu conheço e ponto final. Clarice me daria razão, flutuando na sua nuvenzinha particular de todos os cigarros já fumados.

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  2. Não conseguiria dizer isso melhor: caralho, que texto foda.
    Não sei se é injusto, mas digo que até agora foi o de que mais gostei, talvez por ser o mais equilibrado e a partir disto se lançar a um desvairismo tanto da linguagem quanto do enredo. Metáforas muito boas.

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  3. Não conseguiria dizer isso melhor: caralho, que texto foda. [2]

    quem dera toda a prosa deslocada tivesse sempre a mesma força.

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  4. obrigado ^^

    mto bom colaborar com esse blog, que venha a carta.

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  5. É unanimidade dizer que o conto ficou foda?

    "Clarice me observa, ela toma café e fuma o seu cigarro não mais vendido. Seu olhar é tão fino quanto à ponta de um bisturi, ela abre a minha pele sem pressa, aproveitando cada lasca nova que surge com cada novo coágulo de sangue que descansado aglomera numa poça em meus pés."

    Digno de um grande escritor, parabéns leandro

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  6. Como não te conheci antes hein Leandro? Quero saber onde posso comprar teu livro!
    E esse jorge que de engano roubou toda a cena, a máquina de escrever?
    Lindo, muito mesmo

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  7. Sabe, do tipo de texto que qualquer um daria tudo para ter escrito, nem que seja algo parecido. Já havia lido algumas coisas suas antes, já sabia o que viria pela frente, mas mesmo assim me surpreendeu.
    Todos estamos estirados na última linha, esperando pelas suas próximas.
    e sim, QUE FODA

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  8. Vale dizer que fiquei emocionada?

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  9. TÁ TÁ TÁ
    Tirem o olho dele que já tem dona <3
    (digo, dona da amizade mais inacreditavelmente bem escrita, por ele.)
    Só me dá orgulho esse menino, haha

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  10. Ow velho, q foda esse texto. Legal desse blog q nenhum dos 7 aparentemente nao tem nada em comum...

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