“Você é a cara do meu pai.
O carnê em dia, a pontualidade na traição, sempre às quintas.
Calcula as sobras e os zeros. Se perfuma, bebe umas pra ter coragem, bate o carro.
Diz eu te amo com sinceridade de padre.”
Andréa Del Fuego.
Dulcinéia olha apagada para a chama do fogão. Têm os olhos mais escuros do que o pó do café, pele em dobras de pano de mesa. Borda para as cidades vizinhas, conta histórias em linhas finas, gosta do gosto de sangue do dedo que sempre perfura. Seu filho, quando fica com os olhos perdidos em brasa, a chama de dona Dulce e pede que não fique acordada o esperando, vivo volta para o próximo café, ele diz. Ela sorri limpando a poeira escondida, enquanto ele carrega os pires de prata no bolso. Liga o rádio para não ouvir a porta bater.
Aos pés da virgem, faz a primeira oração do dia com os pulsos entrelaçados num terço azul claro e na cabeça um véu vinho que ganhou no aniversário. Reza baixo, reza lento, as cortinas escondendo as já falsas janelas de sua casa. Mas o tempo não passa, na rádio o almoço não vem, a vida para nos braços de algum amor deixado para trás, impossível. Para cada pai nosso, uma lágrima raivosa por desejar morrer antes de o crepúsculo avermelhar tudo novamente. Penitencias a cumprir.
Ela cultiva a aparência e não corta o cabelo, as unhas entortam, já mortas, não desgrudam do corpo. Dulcinéia não tem ninguém para sujar mais xícaras, comer o bolo, sujar o chão, para não dar descarga e lhe foder gostoso como Mário fazia bem. Trocada por uma trapezista, sequer viu o circo passar e os dotes daquela que levou o seu homem. Ela sonha sempre com quedas, tombos em praça pública, cabeça que se racha em uma lona azul feito céu e o terço que marca os seus dedos finos. Nunca mais contou estrelas desde que soube que Mário morrera voando. Ainda reza para alma dele esquecer a sua e lhe deixar definitivamente só.
Pois o crepúsculo chega sob os seus olhos laranja
Para longe. Dentro da música do Roberto Carlos. Em cima dos pés grossos dele. Nos lábios marrons, entre os pêlos de seu braço. No bolso dele e na cueca volumosa. O seu suar tem cheiro de creme Monange, a pele dele lixa a sua fina camada. Geme nos ouvidos dele palavras de amor de alguma canção que ele desconhecia. Ele que só vem quando as luzes apagam, quando o circo arma o espetáculo e o dedo segue o caminho do paraíso. Sorri agradecida.
Largada no chão o seu filho a encontra. Pergunta se está tudo bem. Maravilhada com a sua educação plástica, diz estar tudo ótimo e lhe pergunta qual o horário pode servir o café. Mas ela não encontra resposta, pois seu coração tampa os seus ouvidos, apaga seus olhos, desmonta o seu corpo, embranquece mais a sua pele monange. Morta, suja o chão da sala. Que ele passa por cima. Seca a garrafa do café, pega as chaves próximas da geladeira, volta para a sala. Olha para o corpo verde em vestido florido. Retira com cuidado o colar de pérolas do pescoço gélido da falecida, enfia no bolso e bate os olhos dela sem cuidado algum junto à porta de sua casa.
Orgulhoso, leva para o pai o colar de pérolas já prometido à trapezista.
Nota: Eu? Na sexta? Pois é, nossa amiga Luna foi presa roubando margarina no mercado. Está tentando pagar a fiança com o corpo, mas o guarda gostou e não quer soltá-la. Cretino. Caso ela consiga sair de lá, ela aparece aqui no sábado contando tudo pra passar inveja na Katrina.
Obs.: o meu forte é a intriga.
há romance até na amarga tristeza da miséria!
ResponderExcluirabsolutamente lindo, embora sórdido.
ResponderExcluirO conto, li. Claro, vc escreve bem, minucioso.
ResponderExcluirMas, gostei mesmo da nota. A leveza, a criatividade!
Parabéns!
Ha, quisera eu ter esse orgulho tão dulce.
ResponderExcluirNOTA: A LUNA NÃO HÁ DE ME FAZER INEVEJA
ela já o faz, naturalmente, haha
Dulce da vida perfeita, orgulho no sorriso.
ResponderExcluirDulce é das minhas, orgulhosa e fã de roberto carlos
ResponderExcluir"as cortinas escondendo as já falsas janelas de sua casa"
ResponderExcluirJanelas falsas, nossa..
Que texto foda!