sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Vão de Dois

Quanto mais solitária, melhor a negra, mais o blues corre em seu sangue farto do chicote e do punhal nas costas rígidas, como o coração que ali tatuou. Alberto está sempre com a língua grampeada no céu da boca ou livre demais para conseguir completar uma frase que faça sentido para se justificar diante do espelho que Solange colocou no fim do corredor. Ele pisa nos cacos para chegar até ela. Arranca os dedos para pegar o seu olhar esguio e não chega ao fim. Foi quando ela descobriu e tomou todos os comprimidos da pia azul piscina do banheiro. Cheiro de sangue no piso gelado, manchas vermelhas no porta-retrato e no fundo das unhas dele. Lágrimas que desentopem uma vida.


Pare você e suspire um pouco.


Solange confere as fechaduras, toma choque na tomada da televisão em cores -novidade na vizinhança. Não corre do estilingue dos meninos, pois deixa que eles espiem na fresta da janela o quanto em cores as atrizes parecem mais belas. Abre a boca em bocejo e sorri por não estar cansada, deixa cair leve riso ao pensar que um dia do ano vai tirar para dormir por todos os dias de insônia quando chega a confundir o seu rosto com o rosto de Alberto. Se pega desejando que suba a vida em coma quando quer mesmo que a rotina caia. A sua agenda é do ano passado, economiza em alguns meses quando tira para adormecer no caminho, espaço sobra para anotar algumas receitas, frases que escuta e promoções do varejo. Quando a sua cabeça esvazia, veste a capa do poeta e inventa algum verso para preencher a lacuna da lista de telefones.


Vire as costas para o tempo

Como a poeira que acumula no quarto

Os versos que fiquem esfriando junto à massa que cresce

Para o molho acrescente vinho

Água destilada no armazém

Pingado para os filhos


Quando depois do crepúsculo e a janta terminar, peço leves bofetadas para o prazer ser maior que o desespero de encarar o silêncio de mais uma noite. Se gozar, engrossa o sono.

Quando na fábrica, debruça no outro para não morrer naquilo, em fúria gasta meia página com o que ela chama de desaforo:

Parafuso para cada rosca. Sem ver lá dentro os dedos já alcançam os furos. Mais apertado fica o sólido sorriso e o peito erguido para encaixar as pernas que nunca se aproximam. Não esquece dos braços plásticos e a moldura para cintura fina não sangrar nos trilhos. Engole a saliva com gosto de ferrugem enquanto ajusta o macacão do patrão. Das iguais infinitas a caixa mais bela é tão bela quão a outra que desce para a reciclagem. Isso traz felicidade numa vida já perdida na vida dos outros e paga apagando o choro. E se encaixam nas caixas e nos lábios do sorriso que está preso à caixa, mas quando abrem a carcaça de plástico não há nada e descobrem o vazio de sua felicidade.

E ele ainda pelo chão escuta Com açúcar, Com afeto, encarando o espelho partido. Quando enfim deixa o corredor, sangra a testa da pedrada do estilingue. Os garotos riem enquanto ele recolhe as maçãs da feira. O sorriso vem mais leve quando o sangue reencontra os dedos. Quando engole o xingamento, lembra que fumava e não se lembra porque parou, foi quando se perdeu no silêncio dela? Engasga com a ânsia pela fumaça. As maçãs escorregam até o esgoto. Reencontra com o cigarro como se abraçasse o filho que Solange abortou.

Primeiro cigarro, abre o sorriso com a queimadura no punho. No próximo, desliza a fumaça cinza com goles amargos. Primeira lágrima após a enxurrada, a única sincera. Do bêbado que dorme, retira o jornal da semana que se foi: Jovem que se matou do andar mais alto, parece-lhe feliz no caixão.

Quando seca as lágrimas no cabelo de Ana Maria, mente em dizer que são por Solange, mas na verdade são dos lábios desprendidos dos cravos ao redor daquele rapaz que se matou logo no alto. Ela apenas abre a mão sem palavras no bolso, que lhe pague então por engolir sem orgasmo e sem lhe causar emoção alguma com as únicas palavras sussurradas ao pé do seu ouvido.

Ele imagina estar longe, quando não mais escuta a respiração do motor deles. Não se achou na volta, pois dessa vez o caminho era se perder. Ir longe para olhar mais perto o buraco que ajudara cavar em seu peito. Encosta nos galhos das baixas árvores, para sair do asfalto e se embrenhar na mata fechada, bastou a promessa do fim. Toda sombra que lhe sugeriu paz, fez escuro o seu olhar, antes pálido, agora oculto.

Entra na mata fechada provando do gosto quente da nascente entre a mangueira alta e o corpo estranho da coruja. Um olho da sua mãe e o outro da Solange. Deixa que lhe observem enquanto se desvela dos panos que lhe cobriam para o mundo, já se banha na nascente com os pés sentindo o fundo com pedras lisas, deixa seu corpo perder pela correnteza. Tudo se mede pela imprecisão do escuro. O seu corpo já desaguado em lagoa fria, podia sentir cada vibração parando e o sangue agitando para provocar o brilho de volta ao seu olhar.

Agarram-lhe firme pela cabeça. Unhas grandes afundadas em seu crânio, lhe retiram de dentro aonde não estava. Se depara agarrado na borda da banheira com o coração pulsando na boca. A mão que lhe puxara para fora foi a mesma que apodrecia ali fronte o seu olhar incrédulo? Não! Arriscado em morrer sem primeiro se achar o fez instintivamente agarrar à borda e fechar os olhos dela ainda abertos. Para cada jarro um adubo diferente, relia a última anotação dela que adormecia no vão dessas palavras.

6 comentários:

  1. A Luna não vem.
    Postei no lugar dela. Amanhã postarei outro tb.
    sem vão. dias preenchidos.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Se eu deixar meus versos
    Esfriarem junto a massa
    Terei que voltar à casa
    Cansado
    Como se precisasse morrer
    Por um cano de idéias...

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  4. Neah?
    Solange, sonâmbula em suas linhas, não saberia contar as silabas para um soneto perfeito.

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  5. Um dos meus favoritos, ainda mais porque originalmente foi oferecido a mim

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