São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o seu corpo será luminoso ; se porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas. Portanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que grandes trevas são.
(Matheus 6: 22-23)
No princípio fez se a luz, que as sombras aos poucos foram consumindo aos longo dos dias em que aqui permaneci. O que me restou foi um fino feixe de luz que se desprendia de um buraco feito na parede, por uma bala. A muito tempo já não ouço o barulho das balas se perpetuando pelo ar e isso me doí como uma rajada de tiros. Elas gritavam que ainda restava alguma vida a ser eliminada, mas agora, esse silêncio sussura que estou só e que provavelmente devo estar morto. Mas ainda sinto a minha pele escorrendo pelos meus ossos e o meu sangue escorrendo pelos meus lábios. E a cada dia essa sensação de vida se torna estranha.
Meus olhos se atrofiaram, necessitados de cores, mas ainda consigo ver através das sombras: outras sombras. E as lhe dou cores, das minhas lembranças. De dias passados, quando tudo era luz, quando fazíamos fotosintese: transforamando tudo que era cinza e pesado em tudo que podia ser leve e alegre. Balão de gás. Lacrimogênio. Lágrimas secas que sustentam as linhas do meu rosto, cicatrizes feitas pelo tempo e feridas das quais ele jamais secará.
Sei que por aqui há um espelho, sinto medo de encontrá-lo, tal como um monstro que se esconde por detrás das sombras. Eu sei que já não devo ser o mesmo e o que os meus olhos irão ver não será o que um dia fui. Nem mesmo a sombra, por mais irônico que seja. Mas temo. Minha mãe dizia sempre, acho que ainda lembro, que a gente sempre se torna o que tem em nossa volta.
Algum tempo que eu não sei medir quanto, senti o gosto da luz, e era doce como açucar e mel. Minha lingua já acostumada com o sabor da solidão, se assustou, mas logo se entregou a esse prazer como o restante do meu corpo. Sei que ela me atravessou e me aqueceu, mas mais do que isso, trouxe meus sonhos de volta. Estremeci. Fechar os olhos e se entregar aos sonhos onde tudo poderia ser como não é e não apenas às minhas lembranças de tudo que foi e não será mais, era mais do que eu precisava. Então me entreguei definitivamente.
Hoje, o que havia sobre minha cabeça, desabou. Fechei os olhos e senti lentamente aquela dor inundando o meu corpo. Não era a dor provocada pelos escombros quebrando os meus ossos. Talvez eu não tivesse mais ossos, nem massa cárnea, mas a dor era como milhões de lanças fatiando o que existe de você. Sorri, sentia tanta saudades do que havia além daquela fresta na parede que esqueci completamente de que morria.
Então olhei, antes de desaparecer, para o espelho.
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Que texto bom, onírico e visceral ao mesmo tempo. Adoro quando você posta coisas assim, menos sobre amor, mais sobre o mundo.
ResponderExcluirAh! Gostei. Fato é que em toda sombra ainda há um resquício de luz. Muito bom o texto.
ResponderExcluirEnviei o e-mail para, quem sabe ter um lugar em terça-feira. Acompanhando o Blog, certamente.
Marco H. Strauss
http://marcostrauss.blogspot.com/