Acordei e me disseram que estava preso naquela ilha sem nome nesse estado sem mar. Pediram para que se eu chorasse, chore baixo. E se correr, cachorros me matariam a mordidas. Imagino-os cavucando meu corpo atrás de carne e não consigo parar de rir. Estava perdido, ouvi, fim da linha cara, o máximo que você consegue aqui é um caranguejo comendo a sua foto 3x4, o que sobrou dos seus documentos sobrará de você. Fico rindo disso tudo e eles não acreditam que eu não queira correr ameaçando o mar com os meus pobres pés de homem, mas não, de raiva planto os meus pés na areia fina, o sol cega os meus olhos com sua luz branca, escuto o meu nome.
Renata disse para ancorar meu navio na esquina da sua casa. Essa garota sabe lidar bem com marinheiros, sabota seus binóculos, rabisca os seus mapas pedindo com carinho que ponha uma concha no seu ouvido para que possa ouvir o infinito. Pede que a guie, de olhos cerrados, sem medo, o seu corpo é pétala arrancada pela ventania, o resto é âncora. Pendendo no ar ela fica, com o cabelo assim nos olhos parece a última, a que me deixará num deserto cavando o seu corpo em areia movediça.
- Um dia você me leva para dentro dessa concha? Um mergulho, é o que dizem, para tirar uma foto com o mesmo sorriso. Eu em teus braços segurando o meu chapéu.
E brinca de pescar o meu silêncio. A música da rádio na minha voz embaraça em sua língua embriagada. Interrompe para pedir que eu não vá embora, não queria sentir o que a mocinha das oito sentia, mas que seu amor morte causava se a abandonasse mais uma vez. Pulseira falsa no braço usaria, vestido vermelho e de casa em casa o pão pediria para que alimentada dançasse pelas ruas o seu drama. Até então buscava equilibrar sua proa nesse estado líquido dos dias, mas por pouco enlouqueceria, beijaria o primeiro virgem com lábios de quem pouco beijou e com arame farpado não deixaria que lhe trouxessem estrias, futuras varizes.
Bocejos. Farol alto clareando os buracos. Eu desvio de mendigos e velhas prostitutas. Querendo passar por cima, bato na lata de lixo, podridão no parabrisa. Vou subindo as escadas com a voz dela repetindo na minha cabeça. Desamarro as botas pretas. Imagens dessintonizadas percorrem paredes brancas. Murmuram no corredor. Desavisado, pedia para viver na mão do médico, dizem que nasceu morto. Flor para quê? Para murchar no vaso próximo da janela feito a vizinha da frente, nem sol ali bate, das flores não restam fósseis, nem perfume, são breves e por serem belas morrem secas.
Minha carne aqui está para ser devorada. Amaciada nos dentes desses, digerida pela fúria. Adestrados eles avançam. Tomam conta do meu corpo, estou em todos os cantos, jogado, despedaçado em lascas, soterrado num buraco morno, no canto mais fundo da ilha sou guardado, reservado para mais tarde. É quando anoitece e me chutam para fora. Caminho em migalhas, debaixo da lua que não acolhe mas oferta a solidão dos merecidos.
Renata me acorda com a concha no ouvido. Disse rindo que prenderia o meu sonho para me ver mais de perto. Desanuvia, Renata. Ela ri mais alto. Chacoalhando as pulseiras na frente da cama. Ou era ela ou era essa imagem para sempre grudada no meu travesseiro. Desmonta-se em quebra cabeça, peça e menos peças. Espuma o canto da boca dizendo que limpou o meu parabrisa Não volta mais, meu amor, a atropelar latas de lixo, eu estou aqui para você passar por cima.
Ela ia ao banheiro quando a peguei pelo braço e disse que iríamos. Assustada, disse que escovaria os dentes primeiro. Não há tempo para se perder com dentes. Meu coração está aonde você os perdeu, querido. Aguardo. Segurei firme o seu braço enquanto descíamos a escada de incêndio sem ela entender o desatino. Paramos em frente o carro limpo, disse que começaríamos a nossa história longe da fina retina desses olhos cheios de esperança. Quem passará por cima de nós? Até o último dia da minha vida, que seja breve.
- Morro primeiro.
Acelero e estamos a 200 milhas. Não há ponto que segure ou mar que abre. Você segura o seu chapéu atrás de óculos escuros fazendo com a boca um solo de piano. E sorri.
- Você fez da minha vida um pleno naufrágio. Amor, estamos afundando juntos.
- Desanuvia, Renata.
sábado, 17 de abril de 2010
Desanuvia, Renata
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Uma concha no seu ouvido para que possa ouvir o infinito.
ResponderExcluirUm infinito de possibilidades escancaradas pela linguagem, pois já diria o escritor: o velho e o mar seria só uma história de pescaria se não fosse o vestido da linguagem e esse é seu acerto, Leandro. Imagens que encerram algo por dentro, que só podemos destrinchar pela via das palavras. No amor a infelicidade da espera é o mais excitante, aqui é o contrário, prefiro te ler do que esperar cada sábado em vão.