terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Nada é tão estranho quanto uma boa dose de paraíso perdido

Um casal e tanto, como qualquer outro. Mas eles eram únicos. Eram poucas as mulheres que gostavam tanto dar o rabo, eram poucos os que curtiam tanto um cu. Os dois se rasgavam por dentro e saíam destruídos cada vez que transavam. Eram tarados, de marca maior, dois bandidos que acabariam presos.

Esse casal que sentava do lado da jukebox era uma comédia mesmo, pensei aqui com meus botões enquanto tentava escolher uma música. Martha, Sweet Sixteen, Make You Feel My Love, Rua Augusta, Surfin' Bird, não tem porra nenhuma aqui, não tem nada que nos pegue pelos intestinos ou que ao menos zoe da nossa cara? Bem, mas que seja, Legião Urbana nunca matou ninguém, acho que não. O casal do lado continuava falando sacanagem a rodo e se engolindo de maneira quase grotesca, eu tinha que sair dali, voltar para a minha mesa, porque eu vim para cá, porque eu vim comprar fichas, aposto que vou levar um bolo da mesma maneira que sempre levava, aposto que ela vai se atrasar da mesma maneira que se atrasava toda vez, vou te falar, é foda, mais foda do que eu posso conceber ou suportar, será que o problema era comigo, será que eu sou um inglês, eu que nunca gostei de pontualidade reclamando da falta da mesma, saí de perto, não aguentava mais, era muita felicidade para o meu gosto e acho que eu estou ficando com alergia, senti minha nuca coçar, senti as axilas pedindo para serem coçadas, como esse bar é estranho, como cheira mal, mais do que o usual, esse era o nosso ponto favorito, pé-sujo, vagabundo, combinava com a gente, ela chegou

e pedimos uma cerveja, duas, três, você não acha que essa porra vai esquentar, ela novamente me censurou por reclamar tanto, ela sempre fazia isso, ela parecia estar voltando de algum velório com aquele vestido preto e aquela cara emburrada e cinzenta, não que ela diferisse muito de antigamente, mas que diabos estava acontecendo com a gente será que nosso único destino possível meu dela e da humanidade inteira era de completar a metamorfose em velhos emburrados que enxergam o mundo preto e branco como em algum filme antigo, a diferença é que esses filmes antigos não eram pessimistas, esses filmes antigos sempre nos fizeram sorrir, aquelas comédias sem sentido, aqueles dramas chorosos que nos faziam ver como a vida é bela, eu deveria assistir algum filme pessimista de vez em quando só para contradizer minha visão de mundo, você já viu coisa mais ridícula, perguntei, o que, ela perguntou, aqueles dois ali do lado da jukebox, não chega a ser deprimente, ela se calou, talvez nossa mesa que fosse deprimente porque nossos rostos nem se tocavam mais, mas também o que eu queria, faziam muitos anos, não é mesmo,

Pois é,
Hã?
Deveria ir ao supermercado mais vezes. Parar de pedir para a vizinha fazer isso em troca de uns trocados. Encontro mais gente interessante
Interessante de verdade?
Como?
Ou que já foram interessantes, você sabe, nada é interessante para sempre, mas às vezes nós damos ao luxo de conversar, você sabe, por alguma educação, para não sermos mal falados, mas tenho essa impressão que nada é interessante a vida toda
E nem a vida toda é interessante. Mas nós continuamos acordando diariamente, você sabe como é.
Tem isqueiro?
Tenho.
(...)
Merci beaucoup

Mercy on me, ela deu para falar francês agora, o que uns anos afastados não fazem com a gente não é mesmo, agora ela deve estar vendo aqueles filmes em preto e branco chatos que nem o inferno, você se lembra, do quê, daquela vez que descemos do táxi porque ele não sabia o caminho e não queríamos ficar rondando pela noite e pagar por isso, e aí começou a chover, mas estávamos sem guarda chuva, um mendigo deu um guarda chuva todo quebrado para a gente, eu saí imitando o Gene Kelly, você estava muito bêbado não é, nós estávamos, lembra que você pulou nas minhas costas e nós dois fomos ao chão, o que eu posso fazer não é mesmo, não sou um homem muito forte

Sabe,

O que, nunca imaginei como seria nosso reencontro, sempre tive uns pressentimentos sinistros, acho que você parou de tomar remédio não é, ah sim, como não, agora meu único remédio é a cerveja, graças a deus, a tarja preta que se foda, sim, um brinde ao fim da tarja preta no mundo, meu tio disse que esses remédios fazem o cabelo cair, seu tio que tem obsessão pelo apocalipse, não, aquele outro, o careca, (nós dois rimos), nem acredito que aquele casal foi embora, no que eles te incomodavam, ah nada demais, mas sabe, tinha muita vitalidade neles, eram dois animais, não devem ter um pingo de porra nenhuma nas cabeças, lembra quando fazíamos isso, lembro, não era bom, era, é sempre muito bom agir como dois animais excitados em público, tipo aquela nossa transa na estrada não é, pois é

Quando a gente não fazia isso também era bom, lembra madruga adentro assistindo Seinfe... Ela olhou para o relógio e a frase morreu no ar e eu tive que acender um cigarro em homenagem a isso e ela voltou a erguer o olhar para mim deu um sorrisinho amarelo e disse que já precisava ir embora, antes de ficar bêbada, antes de tomar pito, antes de fazer o que não queria, mas você não quer nem conver... não, ela levantou-se, meus olhos fixaram no seu decote, tudo continuava firme e eu continuava caindo, e nossos lábios se encostaram e ela foi embora, fazer o que, desocupei a mesa, sentei no balcão, olhei em volta, pedi uma vodka, não volto para casa sóbrio hoje, quando voltei, não sei, mas ajuda a enfrentar os dias que eu não bebo, sabe como é

nossa, como a noite tá fria!
perdão?
frio.
ah sim.

Grandes cabelos, peitos pequenos, uma calça jeans justíssima, voz de cão sem dono, nós não somos mais cães raivosos, somos dois palookas, como diria o velho Tom

você sabe que...
desculpa, esse papo não vai levar a lugar nenhum
talvez eu escreva um conto a respeito disso
sei, sei, mais um daqueles repetecos sem tesão nenhum, que não dizem nada, que são mal escritos...
pois é, não devem ser nem literaturas
você me deprime, sabia?
talvez, meu apelido já foi cão sarnento, por que será que eu te deprimo...
você é uma pessoa triste
sou
você acredita em deus?
stricto sensu, não
hein?
pra mim ele é um pobre diabo que tomou umas biritas
deus é uma idéia na mente do diabo?
deve ser, ninguém é escroto o tempo todo, nem o diabo, eu ainda acredito que ele deva ser um cara legal
olha, não aguento mais esse papo
talvez você tenha a sarna de viver, também
não me acuse
não acuso; constato, que coisa não
esse já é o terceiro bar que eu paro e o terceiro que eu encontro algum inútil que só fala papo furado
suas reações me dizem o contrário, elas quase me dão razão
quase?
mulheres não me dão razão
(ela riu) mas que diabos é isso
talvez nós não tenhamos sarna... talvez só sejamos estranhos... e talvez só um palooka que pode reconhecer o outro
palooka?
palooka. está chovendo, você quer andar? podemos... cantar na chuva...
você é deprimente... palooka. mas você também sabe das coisas.
só o suficiente para não ser um idiota, quer um conhaque?
quero, se vamos andar, se vamos trepar, e se daqui pra frente falaremos mais merda do que já estamos falando aqui
du rien.
o quê?
é francês

Ela riu, eu sorri amarelo, enchemos a cara, e ela agarrou-se ao meu braço... dois perfeitos estranhos... mais uma vez...

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