Entra felina pela sala, aturdida talvez, vai se esquiando pelos móveis da sala até encontrar o meu quarto e esbarrar no cinzeiro transbordando de cigarros e papéis amassados, dos recados antigos que ela deixara na geladeira. Post-its para que eu jamais esquecesse que ela esteve ali, mesmo que sua presença fosse algo tão pertencente ao passado. O carpete vai contando aos poucos sobre a noite passada, o que restou de um lanche rápido, algum poema meu sujo e rasgado por ela que se despe meio ávida, meio tímida, para uma única pessoa, ela mesma. Finjo como sempre que estou dormindo tão profundamente que não ouço os passos trôpegos dela seguidos de alguns soluços indo em direção a minha cama, onde se enfia por debaixo dos lençóis com uma delicadeza quase infantil, de criança com medo do escuro, que se enfia entre os pais de uma maneira que não os acorde, para que não a mandem para o quarto novamente, enfrentar o bicho papão noite após noite. Vai se acomodando, encontrando uma posição confortável até que um de seus braços fique jogado sobre mim num possível abraço. Sinto o cheiro de outros sobrepostos ao cheiro que o corpo dela emana, cheiro de saliva e de gozo, desodorantes de farmácia e loções após barba. O cheiro dela que se esconde de mim, este, ficou em algum outro cômodo. Então durmo.
Acordo e finjo surpresa ao encontrá-la ao meu lado e até consigo esboçar um sorriso quando acorda sorridente e me pergunta que horas são, e eu lhe digo olhando para aqueles olhos borrados de rímel e delineador que formam um círculo negro em volta deles e para aquele rosto de pele tão marcada por pequenas rugas e remanescências juvenis que formam um belo contraste, "São quase 11 da manhã, se não percebeu, já é hora de almoçar. Se quiser eu preparo o seu café da manhã, que na verdade, vai ser o seu jantar, correto?" e ela ri e eu sinto aquele hálito que denuncia uma noite entre doses e mais doses de conhaque, "posso dormir até as 3? Eu juro que arrumo a sua casa antes de você chegar" "Claro que pode, não precisa se preocupar com isso", mas ela vai dormir até as 7 da noite, quando vai se levantar e ir caminhando desengonçada com os seus saltos e apenas eles do quarto até o banheiro, onde vai se olhar no espelho e se assustar ao ver que ao redor dos seus olhos de mel há um profundo cansaço e sua pele se desfaz entre uma maquiagem e outra. E vai chorar sentada na privada, por se ver indo embora sem se despedir de si. E roubará uma das minhas camisas que estão jogadas do cesto de roupa suja e com aquele andar de felina ferida vai esquentar a comida que deixei pronta esperando que fosse seu almoço mas como sempre, é sempre o seu jantar e vai fuçar nas minhas gavetas por alguns trocados para o táxi, se tiver sorte, ou para o ônibus, se tiver azar. Volta para a cozinha e desliga a panela e a deixa sobre a mesa com uma colher, que, aos poucos, vai rechando e levando a boca enquanto vai lixando as unhas dos pés. Mal termina de comer e corre para o banheiro, tentar se reencontrar entre uma ducha e tapas no seu rosto. Algumas fluoxetinas escondidas entre seus cremes também ajudam a delinear aquele sorriso feito de inocência. Deixa a porta aberta durante o banho e a tv da sala ligada no noticiário, onde, saí correndo para ver a alta do dólar, talvez para incrementar o papinho de mulher-inteligente-que-sabe-que-o-dólar-está-a-R$2,25, quem sabe, alguns homens devem gozar melhor sabendo disso. O que me irrita porque acaba molhando todo o chão da sala que,por sua vez, denuncia a saída dela, marcas de pés sobre dedinhos, bailarina entre a corda bamba e o desespero.
Uma vez ou outra me encontra pelo caminho, sorri, dizendo claramente que não preciso esperá-la a noite, talvez só volte de manhã, ou nem volte.
E assim, como sempre, ela vai. Passos firmes de quem não irá voltar com passinhos de felina atropelada, felina vira latas que é, com esse papinho de que "hoje eu não vou voltar porque eu encontrei alguém melhor que você, entende? Sabe quando encontra o homem da sua vida e desse dia em diante, tudo faz mesmo sentido?". Mas sua vida termina todo final de noite, recomeça a tarde. Amanhã vai ser outro, vai lhe prometer amor por uma noite, mas não vai se importar se ela entrega o seu coração junto com o corpo, se agarra a ilusão de que, causando alguma felicidade, estaria salva.
Felicidade, querida não é ver o sorriso de alguém quando te come, eu deveria ter dito antes, talvez hoje, mas sempre acho que ela saberá um dia por si mesma, porque estragar a surpresa? E ela voltará, desmanchada e com a noite nos olhos e com " tive pena de te abandonar, porque eu sei que você não vai sobreviver sem mim, eu sei disso. E no fundo, as vezes, acho que te amo". E recomeça tudo novamente. Jamais digo que em meus sonhos, não é por pena que está comigo. E não é prazer que lhe faz sorrir.
Eu a odeio. Odeio por provocar em mim esse maldito amor incondicional que não me permite esconder a chave em outro lugar, essa piedade que explode a cada movimento dela que implora por proteção e compreensão pela sua procura errante pela noite por alguém que, como eu, a ame com estes olhos borrados de negro e cinza sobre uma pele que se desfaz, que veja nas suas rugas traços perfeitos e nas suas espinhas inflamadas a sua juventude aflorada num sorriso tão doce e tão puro apesar do cansaço que o contorno dos seus lábios denunciam, que cure os seus pés, pés felinos, de passinhos ágeis e delicados, fatais e atordoantes, tão feridos pelas pedras. Que só veja nela o que eu vejo todos os dias quando ela acorda sorridente fazendo que mesmo que eu não queira, sorrir ao ver a mulher da sua vida. Por isso ela sempre vai voltar. Por isso ela sempre sorrirá mesmo sem ter um motivo para sorrir quando desperta. Porque vê nos meus olhos a mulher que ela sempre quis ser para mim, e já é sem perceber.
Mas me calo, nem digo nada a ela. Meu silêncio já diz tudo ao encontrar o som dos passinhos felinos dela em direção a minha cama
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E isso só prova que o amor salva ninguém. Dois dilacerados sobrevivem das migalhas um do outro, como se escravizar o outro, ser sádico e masoquista ao mesmo tempo, fosse o único que amarra as pessoas junto. Pior que a sede a fome ou a vontade de fazer sexo, o amor é um deserto e se arrastar por ele parece ser voar sem desviar das nuvens e do concreto dos prédios.
ResponderExcluirAmor, é a melhor prosa que eu já li sua, gostei demais. Fez pro Desce ou já tava pronta?
Eu só vejo amor demais por todo lado, meu deus.
ResponderExcluirLindo, como não poderia nem ser.
katrina n escrevia por aqui ha um bom tempo... q aparição magnífica! estava só esperando pela oportunidade de se reestrear, n eh?
ResponderExcluireu leio mtos blogs, mtos blogs...e o q eu mais gosto é de ver/ler bons escritores se revelando, enxergar anônimos bem como enxergo meus maiores ídolos... coisa rara, querida. meus humildes parabéns, katrina.
É estranho conseguir imaginar passo a passo do texto, é quase como se eu tivesse escrito... mas melhor. Vc devia escrever mais aqui.Ia ser legal.
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