segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Pelo coração da galinha

No sábado a tarde era a mãe que apontava para o Alambrado: quero aquela ali, e o pai entrava no galinheiro, pisava na merda e nos restos de comida, encurralava a ave e ali mesmo torcia-lhe o pescoço. Ele já saía com a galinha presa pelos pés, de ponta cabeça, os pequenos olhos perdidos em meio ás que deixava, vivas ali, ciscando o destino que lhes esperavam.
A irmã mais velha avisava que a água estava fervendo e a mãe trazia o caldeirão fumegante para o quintal. Ali, a família se juntava, queimava a mão no caldo quente e depenava a galinha. A caçula sempre lembrava: "o coração é meu". A do meio retrucava: "não, ele é meu porque eu vi primeiro!". A mãe lamentava a desgraça das galinhas de possuir apenas um coração, já que este desde sempre o Éden era disputado por Abel e Caim, Adão e Eva. A mais velha limitava-se a arrancar as penas em silêncio antes que a água esfriasse e os pensamentos escapassem.
O pai trazia algodão embebido em álcool, colocava fogo e passava a galinha de leve na chama para acabar de tirar as penugens. Ficava no ar o cheiro de pena queimada e pele tostada, enquanto o sol caminhava a lentos passos para o meio do céu.
As galinhas sobreviventes continuavam ciscando monótonas, olhavam uma para a outra, tentando descobrir quem iria para a panela na proxima semana, apostando com isso os últimos grãos que o saco caído, ao longe no chão, possuía. A ave de pescoço quebrado e depenada era colocada em cima do mármore frio e aberta na ponta da faca pela mãe. Conforme limpava, ela ia mostrando para as filhas, exímia cirurgiã doméstica, a anatomia da galinha. Não muito diferente da anatomia das meninas.
A manteiga estavalava na panela a espera dos temperos. A caçula preparava o suco de limão enquanto a do meio preparava o forno. A mais velha arrumava a mesa, pondo os talheres e pratos, sorrindo discretamente com a certeza de que o coração seria seu, escondido secretamente entre as pernas da ave. Um dia descobriria, com pesar, que o coração das mulheres também se refugia entre as pernas ocasionalmente.
Posta a mesa o pai puxava uma oração, seguida de uma bronca pela discussão à mesa sobre o bendito coração da galinha, que havia sumido e ninguém, nem mesmo a seqüestradora, sabia onde ele estaria. Após muita briga e a ameaça crescente de birra da caçula, a mãe descobre que o coração havia caído das pernas da ave sobre o fogo alto do forno. Só restava cinzas e mágoas.


Muito tempo se passou desde então. As meninas cresceram e cada uma freqüenta o restaurante que lhe convém, e os corações agora vem aos montes, em espetos. Menos a caçula, que traumatizada, virou vegetariana.