domingo, 28 de fevereiro de 2010

Fábula Kafkiana


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Franz Kafka estava em casa, trabalhando, se sentindo um inseto imundo, quando seu pai frio e opressor apareceu. Ele disse que Franz não deveria ficar o dia todo em casa trabalhando. Franz diz que o trabalho que faz é importante. O pai responde que dentro da sociedade esse trabalho não faz nenhuma diferença, e que se Franz morresse amanhã a sociedade não ia dar falta. Franz responde que mesmo assim deve concluir seu trabalho, senão será despedido.

O pai pega os papeis de Franz, amassa, e joga no lixo. "Eu gosto de balé. Hoje você vai dançar balé." Franz diz que não sabe dançar balé e que precisa muito trabalhar. "Eu sou seu pai, e você fará o que eu quiser".

Franz Kafka se vestiu de rosa e foi dançar balé. Ele dançava com muita graça, mas o cheiro de seu sovaco era extremamente forte, de forma que seus companheiros de dança não suportavam a sua presença e golpeavam a cabeça de Kafka com bastões de ferro.

Kafka ficava muito irritado, e como vingança, defecava no lanche dos colegas. Até que o professor de balé descobriu e obrigou Franz a se transformar em seu escravo sexual.

No momento em que Franz começou a se despir, entraram no recinto seus colegas de dança, que indagaram sobre o que estava havendo. O professor explicou a situação e os colegas ficaram muito irritados por descobrirem que estavam se alimentando das fezes de Franz.

Embora achassem que era uma pena muito dura transformar Franz em escravo sexual, uma suruba com todos os participantes se aproveitando de Franz seria o suficiente, na opinião dos colegas. Franz disse que estava arrependido do que havia feito, e que defecando no lanche dos colegas estava apenas descontando pelos golpes com os bastões de ferro. Ora, Franz não tinha controle sobre o cheiro de suas axilas, o que tornava injustas as cacetadas. Logo, de acordo com ele, estaria equilibrada a sua balança crime/castigo, e assim, não lhe cabia nenhuma punição.

O professor, que se agigantava diante de Franz, disse que ele devia ficar quieto, que não tinha direito de se expressar no momento. O professor e os colegas se reuniram num canto, longe de Franz, para debater o que deveria ser feito. Após alguns instantes, chegaram à conclusão de que iriam transformar Franz em escravo sexual. Após comunicarem a decisão a Franz, este indagou o motivo de tal decisão. Disseram: "Pois somos vários, e você apenas um, faremos o que quisermos com você".

Franz achou a decisão um tanto covarde e injusta, mas como não tinha poder de fazer mais nada, começou a defecar, na frente de todos. Depois, pegou as fezes e esfregou em sua boca, seu pênis e em seu ânus. Com o que restou, besuntou o resto do corpo e falou: "Então, quem vem primeiro?"

Chegando mais tarde em casa, Franz se arrastou até seu quarto e caiu no chão. Ainda pode ver do lado de fora o dia amanhecendo. Então se encolheu todo e de seu pulmão brotou um último suspiro.

Mais tarde a empregada entrou em seu quarto e o jogou no lixo. Depois limpou o quarto, que cheirava a fezes. O pai de Franz estava muito feliz e resolveu sair para caminhar. O dia estava bonito e ensolarado. Antes começar a caminhada, aproveitou e tirou o saco do lixo. Antes de jogar o saco no buraco do corredor do prédio, gritou dentro do saco, para Franz: "Por que não fez algo de útil e botou o lixo fora?".

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sábado, 27 de fevereiro de 2010

Meio Laranja Cinza Blue

Há um rabisco, no verso dessa folha que diz. Versos não vêm em forma de cálculos. Na cabeça de um elefante. Em pára-quedas? Estão nas hélices de um cata-vento. A fina camada. Cataventos.


Não tem data. Mas tudo por aqui. Está assim. Frases cortadas, versos quebrados. Uma palavra jogada em um canto barrado dessa parede. Me faz voltar.


Pouso novamente. Ergo o olhar junto com os ombros, encaro o meu quarto, o retrato velho de moldura oval, reencontro com a linha que gera o equilíbrio e não faz disso mais uma passagem em um sonho, a neblina abaixou. E estou de pé. Já encoberto por todos os erros, todas as bandeiras foram usadas. Estou bem aqui, ouço uma cantora que desconheço, escrevo em cima de uma capa de disco e bebo uma cerveja para me concentrar, você pode me ver?


Acordei às 17 horas, pude sentir o pulmão da casa respirando sem o peso dos pés deles. O telefone surpreende, não faço questão alguma de atendê-lo, minha língua dormente não corresponde ao chamado dessa cabeça que mais leve não se prende a coisa alguma. No centro, há um espelho que mora um corpo estranho, como se me olhasse de um microscópio e não reconhecesse esse mundo perdido. Deixo os olhos na parede, retorno para minha sinfonia. A sola áspera toca a cerâmica marrom. Cavo com os pés o mesmo caminho.


Tenho me ocupado muito ultimamente. Meu médico disse para parar com os comprimidos e voltar ao maracujá. Levanto para virar o disco. Ele confia no seu diagnóstico, eu confio no meu desespero. Que volta a cada dia cumprido de sentimentos nulos, subtraindo-me em equações de ego em ego. Os olhos inertes, presos por xícaras e xícaras de café que se perdem, ocos e vazios. Quando os vejo assim de montes, aglomerados entre crianças chorando, com as mãos no bolso ou segurando a alça de uma bolsa, eu me escondo atrás de uma pele grossa, um couro de jacaré. Encoste em mim com esse seu olhar tão questionador que passo por cima com o peso de eras que um réptil possui.


Mas acalma. A pior das engrenagens movimentaria. Com esse som que ensurdece o peito e rebate por todos os poros sem se perder pelo vão da janela.


Quando cheguei perto demais, ela disse que eu a escamava com uma faca amolada a mesma que ela retocava o batom e me dizia me beija de lábios cor de rosa. Quero sim mastigar cada pétala dessa flor em seu cabelo, dividir o maço, dar um abraço suado no intervalo e não dizer adeus como você disse. Perto deles, somos bichos selvagens, um leopardo escalando uma árvore, fugindo da mata densa. Amantes são seres solitários e se perdem em dever do outro, um sacerdócio, junto com a quebra de uma lei vem à cassação da alma, decapitações de cabeças. Ela me disse que não jogaria a toalha, não desceria o véu, que ali dentro estava confortável, protegida da chuva, das pedras.


Cheguei aqui ao menos. Não fiquei nas pedradas, nos socos, nas pontas dos pés dos garotos. Nos olhares esquivos, dos vários nãos, da projeção medonha de várias pessoas. Empurrei a corrente e o que se arrastava na ponta era a carcaça do mundo. Que muitos dizem carregar nas costas. Mas que de tempos em tempos, eu o fazia de bola, saco de pancada, massa de modelar. Não sei o que me tornei. Essa criatura medonha, capa preta e rua escura?


Querer amanhecer com motivo foi um risco. Perde-se o tempo exato das coisas. A respiração abafada pela correnteza do afogado. Às vezes eu mergulho, corto de leve esse pano, essa pele, e deixo o sangue acomodar entre os dentes. Ana C olha para mim como olhava um corpo de um poema. Ela mesma disse. O que sentiria ao abrir o gás de cozinha.


Batem na porta do quarto. Minha mãe chegou e eu não tinha percebido. Ela bate de leve, como se não desejasse mas por força maior do hábito assim realizasse. Vou até ela. Não a entendi. Seus olhos pesavam, bolsas de sono penduradas. Segurava um terço nas mãos, passou por mim e apagou a vela embaixo do retrato oval, fez o sinal da cruz, pegou os remédios na gaveta e entrou pelo corredor. Não deu nó a minha presença. Ouvi, que esteja em paz, de sua boca.


Troco o disco. A música é a mesma. E fala de saudade, amores doentios, perdidos, despedidas sem abraços, abraços vazios, bebidas, ácidos, prédios abandonados no centro da cidade, solidão. Abro a janela e me misturo com o crepúsculo, a sua cor é a cor da minha pele, meio laranja cinza blue.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Poeira de estrela

Às vezes eu fico me perguntando porque eu fico parado na rua, olhando vitrines vendendo qualquer bobagem, lembrando de uma melodia perdida. Ouço discos e mais discos e não consegui lembrar qual seria a música. Percorro o bafo de uísque de Tom Waits, topo com as guitarras de Pete Townshend, fumo uns cigarros com Dylan que me empurra três copos de café enquanto lamenta das mulheres perdidas, e volto à realidade quando a pilha acaba. Qual era o diabo da música? Ouço então a dodecafonia dos carros, pessoas e cachorros e acho que o café está começando a fazer efeito - café faz efeito de fato ou não? - não consigo manter as mãos no mesmo lugar, e talvez essa seja a hora do dia mais fácil de se perder em pensamentos banais, como por exemplo, pensar qual é o seu propósito nesse mundo. Se esse mundo tivesse propósito, eu fumaria cigarros de filtro vermelho? Eles são percebidos em dois tempos por esses donos de bar que não nos deixam fumar na propriedade deles. Isso é ditadura. Mas como eu estou violando o espaço deles, talvez eu seja um antidemocrata.

Isso acontece com todo mundo? Elas não podem começar a chorar que minha mente começa a viajar por aí lembrando do que eu fiz ontem. Isso não é covardia? Eu não deveria imediatamente tentar fazer com quem ela parasse de chorar? É, eu sou um covarde. Ela vai virar a mão na minha cara. Eu fiz merda. Por que não dá pra fazer nada nessa hora? Mãos no ombro são repelidas. Palavras serão ignoradas. Quase como se ela tivesse sido recortada da existência e eu fosse o único a acreditar nela. Como se eu fosse uma criança tentando consolar o Papai Noel. Comparação meio ridícula, eu sei, porque o bom velhinho não bebe tanto assim. Nem acende um cigarro na guimba do outro, como acabou de fazer. E também acho que não há espaço para tristeza no mundo dele.

Entre nós...? Ah, direto. Será que nós estamos tão distantes assim? Se é assim porque continuamos juntos? Por que ainda vamos na locadora juntos? Fazemos a merda que for juntos? Como ainda existe tesão entre nós?

- Sabe. Uma vez pensei que eu fosse morrer. Estava tossindo muito, meus dedos estavam amarelados, minhas gengivas sangravam sem parar. A indisposição era infinita, até para esticar o braço e pegar um cigarro. Só o que eu queria era esfregar os olhos até acordar. Não conseguia. Uma sensação mórbida me dominou e eu pensei, que merda, minha hora chegou. Acho que estou desfalecendo. Então tive vontade de escrever. Não fiz nada, apenas fiquei movimentando os lábios e falando palavras sem nexo. Ninguém ouviu. Mas inventei uma história. Nela acontecia o que acabou de acontecer. Eu chamava pelo nome... Você sabe, da minha ex. A resposta para isso deve estar em algum empirismo, mas eu simplesmente não sei responder ao certo porque, afinal de contas, eu disse isso. Mas no final a gente acabava bem.

Ela já havia parado de chorar, mas continuava de cabeça baixa. Quase não dava para ver que seus lábios se movimentavam.

- E uma história muito brega.

- Qual é o mal disso? Quando a gente vai na locadora a gente quer ser traído? Não, a gente só pega os filmes que a gente sabe que vão terminar bem. Se não termina bem, nós alugamos a parte dois. E isso me dá a esperança. De você ver que, no final das contas, eu não sou uma pessoa tão ruim assim. Eu só sou um babaca confuso.

Ela concordou com a cabeça.

- Mas é uma história um tanto sem estrutura.

Eu sorri.

- Pós-modernidade, você sabe. Subversão dos clássicos. Acho que é porque eu nunca tive muita noção ou timing. Não sei administrar muito bem a dramatização. Quando ele deve começar ou terminar. Mas eu lembrei quando você tava deitada lendo alguma revista qualquer de música e eu estava fumando o primeiro cigarro do dia. Estava tocando uma música que eu não lembro agora. Tentei lembrar de qualquer jeito, mas ela não veio. E não estava esse calor dos infernos, você sabe. Estava uma brisa fresca, gelando o meu rosto. Não sei se eu criei isso na hora ou se isso realmente aconteceu. Mas foi a única lembrança que eu consegui me agarrar de quando, sabe, senti que a vida poderia ter um instante perfeito e que eu não sou indestrutível, apenas... passional. Minha memória não é muito boa, mas até que eu sei o que eu quero. Ir no cinema, ver a comédia romântica boba da semana.

- Não é algo muito masculino de dizer, você sabe. - Um sorrisinho irônico, pela primeira vez em horas.

- Ah. Foda-se.

Ela riu.

Ah, lembrei!

My Funny Valentine.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Novela III

Badinbed estava na lama. Apesar da rotina quase constante de ser deixado. Ele estava na lama. Disse que tinha que sair para espairecer e me chamou para ir junto. Eu não estava a fim de ir e disse que só tinha o dinheiro do aluguel. Ele disse me bancava. Eu fui para beber de graça. Chamou também a garota gostosa que não me dirigiu o olhar na festa do dia anterior. E ela levaria suas amigas junto. Ele disse que sentia sua sorte melhorando. Eu disse “há”.Chegamos a um daqueles lugares da rua Augusta. Acho que era o Inferno ou o Studio. Tomei primeira cerveja. Lembrei que o Edivaldo que pagaria então pedi outra... Agora uma Heineken, boa cerveja. O nome da menina gostosa era Eva, achei apropriado. Ela havia levado mais duas amigas... Uma sem sal, a outra tinha umas pernas que pelamordedeus... Mas tinha cara de boxeador aposentado. Tinha mãos e queixo de lenhador. E junto com elas havia um cara que tinha a língua presa. Eles estavam na mesa conversando sobre comida, acho que nenhum deles comia carne... Sei lá. Uma delas começou um discurso sobre as vantagens da dieta a base de verduras e vegetais, que comer carne era errado e que ela gostava de chuchu. Perguntou o que eu achava provavelmente para eu me envolver na conversa. “Não gosto de chuchu, é só água... o quarto estado físico da água é o chuchu”, então a mesa se calou. Bad riu, mas as outras quatro pessoas ficaram me encarando. Levantei para pegar outra cerveja e uma dose de tequila, eu estava de chinelo... (de barba pra fazer, camiseta velha e amarrotada, jeans gasto da barra rasgada) o cara da língua presa (que vou chamar de CLP a partir de agora) disse em tom de piada:_ Você tem coragem de sair de casa usando chinelo?_ É, saudades de Paris._ Sério? Lá usam muito chinelo?_ Não, Lá ninguém se mete na vida de ninguém.Então saí, Bad riu de novo... Eva sorriu.Estava no balcão e Eva foi pegar alguma coisa para beber. E começou a falar, pela primeira vez comigo. Tinha o cabelo curto preto e todo o brilho da cidade nos olhos. Quase queimei os olhos. Ela me disse “oi” e eu pedi duas tequilas. Perguntei se todo mundo estava falando mal de mim na mesa. Ela disse que não._ Você não é muito de conversar, não? - disse ela._ Não. – Disse enquanto lambia o sal._ Tá tentando esconder alguma coisa? Ou você é meio chato mesmo?_ Há - sorri amarelo -, acho que as pessoas me amam mais quando me conhecem menos. – respondi tomando a tequila.Ela riu de novo. Perguntei se ela queria beber algo. Pediu um Apple Martini... Eu achei super adequado. Eva, maçã... Parecia piada. E eu até ri. Pela primeira vez em um bom tempo.Eva tinha 20 anos, era sustentada pelos pais. Já tinha namorado com um cara, mas quando ele tentara parar com o cigarro se tornou chato demais e ela o largou. Sabia falar três línguas diferentes, viajava para a Europa todo o ano e não gostava de cerveja.Eu disse a ela que tinha 24 anos, gostava de escrever e não sabia andar de bicicleta. Não tomava café da manhã, preferia o Rodrigo Amarante ao Marcelo Camelo, tinha sorte no baralho, gostava de cerveja e nunca dormia bem.O show não havia começado, não lembro o nome da banda. Não estava muito interessado pela banda e ela também não... E como o assunto havia acabado a gente acabou se beijando. Não durou mais que três minutos... Ela terminou o beijo e subiu sem falar nada. Nem tentei entender... Peguei outra tequila de doze reais e mais duas cervejas long-neck de quatro e cinqüenta e fui para a mesa. Ela sentou no outro lado com a amiga sem sal e o CLP. Eu sentei com o Bad e a outra amiga/lenhadora... Bad tava se atracando com ela. Ainda bem que eles estavam ficando... Se estivessem lutando ele não teria chance.De repente vi que o lugar tinha garçons! E eu andando por aí igual um macaco! Pedi mais três cervejas. E me mantive sentado. Eva foi ao banheiro e na volta sentou do meu lado. Ergui o braço vitorioso e pousei no ombro esbelto dela.Edivaldo me chamou e disse que a lenhadora tinha convidado ele pra ir para casa com ela e que ele ia embora. Como ele tinha que pagar minha comanda disse que ia também. Então todo mundo resolveu fechar e sair do lugar. Só a minha comanda tinha dado oitenta e dois reais. Mas Badinbed estava feliz e colocou tudo no cartão.Bad foi embora com a boxeadora. Os outros –inclusive eu- paramos no bar da frente... Mas pouco tempo depois o CLP disse que ia embora e ofereceu carona para as garotas... Eva recusou, a sem sal topou e os dois saíram de lá. Chamei Eva para ir para o meu apartamento, lá tinha cerveja e vinho e no bar tava fazendo um frio dos infernos.Lá tudo correu de forma tão natural que eu nem consigo explicar. Eu via a vontade no rosto dela, ela tremia de amor... E nem que só durasse aquela noite era amor denso... Dava para sentir no ar. Os cabelos, os seios, os gemidos, o corpo inteiro em sintonia... os olhos dela colocavam fogo na casa inteira.A noite estava acabando e estava ficando cada vez mais claro. Ainda estava frio... e nós dois estávamos na cama do Bad – já que eu não tinha uma -. Ela se vestiu, passou batom, sorriu e limpou o excesso na minha camiseta. Me jogou um beijo de longe o foi embora. A noite tinha acabado e eu não podia fazer nada.


Frase Laranja da Quarta Feira:
"Ele me disse assim: "Ei, vocês cantam sobre cães, sobre estar doente, vocês têm uma pegada, isso vai levá-los ao topo". E ele, basicamente, ensinou para a gente cinco acordes, mas disse para não usarmos mais de três por música."
Mark Arm, vocalista do Mudhoney, sobre o dono da Sub Pop

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Sentimentos Holográficos - ou - Os Crânios Macios

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A pessoa telefona.

-Oi, Cadafalso! Você ainda está em casa?
-Não, estou em outro lugar. Aqui é o meu holograma. Digo, o holograma do Cadafalso. Se eu fosse o meu holograma, seria um holograma de mim mesmo. E isso seria muito estranho. Pois ser um holograma já é meio estranho. Não se pode fazer muita coisa. Apenas ficar sendo um holograma, basicamente. É um tanto entediante. Mas pode falar, eu passo o recado pro Cadafalso.
-Então, holograma, como vai você?
-Muito bem! Tirando as limitações às quais já estou acostumado na minha condição de holograma.
-Imagino. Você sabe onde o Cadafalso está?
-Sim, ele saiu com seu filho. Foram comprar crânios de bebês.


Na feira.


-Quanto tá o crânio de bebê?
-R$7.
-Tudo isso?
-Se você levar 3, te faço por R$15.
-Ah, deixa, a barraca ali do outro lado vende cada crânio a R$4...
-Mas os crânios dele não são de qualidade como os meus!
-Ah, é? Qual a procedência dos seus crânios?
-São da melhor qualidade: crianças saudáveis, que tiveram boa alimentação...
-Bom, pra mim são bem parecidos com os crânios da outra barraca.
-... tiveram uma boa educação, estudaram vários idiomas...
-Entendi, posso provar um pedacinho de um deles?
-Claro! Toma.
-Hummm. Muito bom. Prova aqui filho... e aí, o que achou?
-Gostei, pai.
-Acho que esse aqui é melhor do que os últimos crânios que sua mãe comprou.
-É, mas acho que a mamãe não comprou crânios de bebês, comprou crânios de adolescentes, que são mais duros e menos saborosos.
-É, verdade, acho que estavam bem baratos e ela comprou para experimentar.
-Pois é por isso mesmo que você deve comprar aqui na minha barraca. Eu vendo crânios de bebês; a outra barraca vende crânios de pré-adolescentes. E são de procedência duvidável.
-É, pai, eu não gosto de comer crânios de crianças mais velhas, só de bebês, que são bem macios e gostosos.

Em casa.

-Chegamos!
-Oi, Cadafalso.
-Oi, holograma.
-Sua esposa ligou. Ela já vai chegar. Comprou os crânios?
-Sim, comprei.
-Ah, que ótimo. Posso ver?
-Claro. Mas por que você quer ver?
-Ué, tem algum problema isso?
-Não, é que, sendo você um holograma, não consigo entender seu interesse em comida.
-Assim você fere meus sentimentos.
-Que sentimentos? Você é um holograma.
-Você não devia falar assim comigo, vou acabar entrando em depressão outra vez.
-Que depressão??? VOCÊ É UM HOLOGRAMA!!!! Quantas vezes vou ter que repetir?
-Pai, não fala assim com ele! Olha só, você está fazendo o holograma chorar.
-Filho, você não vê? As lágrimas não são de verdade. São holográficas.
-É, realmente. Mas e os sentimentos dele?
-Também não são reais, são apenas respostas geradas pelo software do sua programação holográfica.
-Não tenham tanta certeza disso.

A esposa chega e eles jantam os crânios.

Os anos passam. Cadafalso e sua esposa geram mais um filho. A vida parece transcorrer normalmente. Até que a polícia encontra o corpo de Cadafalso enterrado num local próximo de sua casa. Os peritos dizem que o corpo está enterrado há muitos anos. Desde antes do nascimento do último filho do casal.
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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Sophia: Leite Condensado e Folia

Carnaval é uma das piores épocas do ano, acho que empata com as festas natalinas. Em 1998 eu tentava fugir da multidão, dos convites para bares, dos desfiles e das mulheres sem calcinha. Eu queria um fim de semana tranqüilo. Queria comer uma lasanha e tomar tubaína. Eu queria e lutaria pela paz do meu fim de semana de carnaval. Mas primeiro eu tinha que ir ao mercado.
E foi no mercado que eu a conheci, ela estava tentando pegar uma garrafa de rum na prateleira mais alta. Vestia uma saia curta e justa que subia todas as vezes que ela se esticava na tentativa de alcançar a garrafa. Me pediu ajuda. Eu ajudei.
Sophia tinha 1,60 de altura, cabelo liso um pouco abaixo dos ombros, falava gesticulando, sorria demais e tinha o olhar de gente maluca. Ela começou a puxar assunto e eu fui idiota o bastante para levar a conversa adiante. Até que ela disse que estava comprando o rum para levar na casa de uns amigos que iriam assistir o desfile pela televisão. Eu havia comentado sobre a minha idéia de carnaval pacifico, acho que ela me achou solitário e talvez por pena tenha me convidado. Eu não queria ir e eu disse que não ia.
_ Você é crente? – Ela perguntou.
_ Não.
_ É comunista?
_ Porra, não! Os comunistas têm algo contra o carnaval?
_ Não sei, perguntei por causa da sua barba e da camisa vermelha. E porque você não quer ir então? Tu é bicha? Tem medo de mulher? Qual é a sua afinal?
_ Só quero ficar na MINHA casa e comer a MINHA lasanha, mas que inferno!
_ Acho que você é capado. Tu deve ser algum tipo de eunuco. – A essa altura da discussão nós dois já estávamos aos gritos.
_ Me deixa em paz!!!
_ Deixa de frescura e vai nessa merda!
_ Tá bom! Mas que diabos...
Ela sorriu e perguntou meu nome. Marcamos de nos encontrar no mercado as nove horas. Ela se atrasou vinte minutos, eu comi um pacotinho de amendoim enquanto esperava. Ela chegou, estava bonita e cheirosa. Mesmo pintados, os olhos ainda possuíam certa insanidade.
A tal casa dos amigos estava cheia, umas trinta pessoas. Estava cheia de churrasco e cerveja. Sophia sumiu e eu não conhecia ninguém. Na verdade eu não conhecia nem a Sophia. Eu estava andando de um lado para o outro segurando uma latinha de cerveja. Estava mais perdido que um cego num quarto escuro procurando um gato preto que nem estava lá.
Achei um lugar para sentar, em frente a TV. Faltava dez minutos para a meia noite e a Camisa Verde e Branco ia entrar na avenida. Os palmeirenses vibraram, eu levantei e saí.
Sophia estava no quintal, encostada no muro e segurando um copo de mojito. Um cara visivelmente bêbado estava falando perto do ouvido dela e ela parecia muito incomodada. Ela me dirigiu um olhar então me aproximei. Ela me apresentou como o namorado dela e me deu um beijo sem língua. O cara olhou meio estranho e saiu de perto.
Ela me agradeceu e começou a falar de mil assuntos ao mesmo tempo. Alguns minutos depois, me pediu para pegar outro mojito para ela. Quando eu voltei o cara estava lá novamente. Eu não sou o tipo briguento, apesar da barba, do queixo quadrado e da pele vermelha de herói de velho oeste.
Cheguei perto dela, coloquei meu braço no ombro dela e disse:
_ Escuta cara, porque você ta embaçando aqui ainda se tu tá sabendo que ela ta comigo?
_ Você não faz diferença, se ela der mole eu cato mesmo! – respondeu o bebum.
Porra, eu não posso deixar o cara me zuar na frente de uma mulher que eu mal conheço. Ainda mais se ela for a única pessoa que me conhece em um lugar estranho. Então eu empurrei o cara com toda a força para ele cair no chão e chutei ele na altura dos ombros. Foi tudo muito bonito mas nem tinha sido para machucar. Ele se levantou e ameaçou uma reação.
_ Se você der mais um passo eu vou socar sua boca com tanta força que você vai começar a falar pelo cú! – Eu disse alto, cuspindo e com as sobrancelhas franzidas.
Ele recuou. Sophia se impressionou, mas o comentário da suposta briga já estava se espalhando e ela resolveu ir embora. Me chamou para terminar de ver o desfile na sua casa. Chegando lá começamos bebendo cerveja, depois bebemos rum e no fim da noite lambemos leite condensado do corpo um do outro.
Passei mais três carnavais horríveis com Sophia, mas mesmo depois dela ter ido embora... Eu nunca consegui ter um carnaval tranqüilo com lasanha e tubaína.


Frase Laranja da Quarta Feira:
"Não existe gol feio. Feio é não fazer gol"
Dada Maravilha

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Ovelhas Amargas

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Eu termino de preparar o meu miojo. Ele está quente. E todas as pessoas do mundo morreram. Mas tem um cara que fica falando merda sem parar. Ele fica rindo. E fala de umas coisas que eu não consigo entender.

-O que acontece é que o meu coração bate "tum" a cada 4 segundos. Depois disso ele faz "tumtumtumtumtumtum" em apenas 1 segundo.
-Sei.

E aí ele falou sobre o transe hipnótico. E o liquido energético. Mas eu não sei que porra é isso.

-Eu tava cortando a melancia. O meu dedo estava bem longe. Aí POW. Eu acertei, apesar dele estar longe. Começou a sangrar muito. Eu perguntei pra minha mãe o que se passa no dedo quando ele está sangrando. Ela disse "Vem ver um cachorrinho", olhando para a tela do computador, e nem notou que o dedo sangrava. O namorado dela ficava olhando pra minha cara, mas não dizia nada. Então falei "Mãe! O que eu passo no dedo?". Quando desisti dela, virei-me e saí do quarto. Foi aí que ela notou e desesperou-se. "Meu Deus, filho!!!!". Fiquei parado olhando pra ela choramingando e gritei "Fala logo! O que eu passo?". Ela mandou eu passar um spray antisséptico. Depois, fui ao computador e procurei na internet por "Cortei meu dedo". Achei muitas respostas. O sangue estava escorrendo pelo teclado.

Então começou um filme estranho. Ele começa normal, e vai ficando maluco. Até não fazer mais nenhum sentido.

-Eu não entendi nada que aconteceu.
-Eu entendi, pois dormi desde o meio do filme e acordei agora, no final.

Quando terminei de ver o filme, sentei-me no computador para continuar a escrever o que havia começado antes do filme. Eu havia terminado de preparar o meu miojo. Levava ovo e requeijão. Fica muito bom.

-Nunca comi miojo com ovo.
-Devia experimentar, fica outra coisa.

Mas ele estava deitado no chão, dormindo, quando falou isso.

Eu me distraí por um instante, estava muito cansado. Ele ficou deitado no chão da sala e não sabia o que fazer com ele. "Acho que vou deixar ele dormindo aí mesmo."

Quando acordei ele já havia ido embora. Perto de onde ele dormia estava a minha avó, fazendo o que ela sempre faz, nada. Ela ficou olhando pra minha cara. E não disse nada.

Entrei no meu quarto e comecei a ler um livro de contos. Os contos eram todos malucos, e eu não entendia nada.

Esse livro começou a pegar fogo, de forma muito intensa. Queimou os meus dedos e o deixei cair em cima de meu pênis, que também começou a pegar fogo. Minha vó sentiu o cheiro de fumaça e veio ver o que estava acontecendo.

-O que está acontecendo?
-Meu pau tá pegando fogo.
-Ai, tadinho! Tá doendo?
-Não, só um pouco, é mais uma ardência.

Passei a noite em claro tentando apagar o fogo de meu pênis. De manhã, já não restava mais do que 20% do meu órgão genital. Resolvi ir num médico especializado.

-O seu, é uma caso grave de Foguius Penianus.
-O que isso quer dizer?
-Que seu pau vai pegar fogo até virar carvão.

Entre lágrimas assisti ao meu membro sexual desaparecer.

No dia seguinte, as crianças da escola ficaram me humilhando.

-Olha o sem-pica!!! aHAuhauaHuahauhaU

Até os professores:

-Isso é pra aprender a tomar cuidado com os livros que lê. Se fosse um livro de qualidade, não tinha acontecido isso. Agora está condenado a isso, a ser um despirocado.

Com esse evento, minha vida tomou outro rumo. Me tornei eunuco e fui trabalhar na Arábia Saudita. Aconteceram várias coisas, umas coisas meio malucas, não deu pra entender nada. Quando me dei conta, estava voltando para minha casa. Minha mãe, assim que cheguei, preparou um miojo. Com ovo e requeijão. Mas ela colocou tanto requeijão, que me engasguei e morri.

No meu enterro, as pessoas ficaram chorando, em volta do meu caixão, coberto de requeijão. E o meu corpo também, estava cheio de ovo, que minha mãe havia colocado demais no miojo. Foi aí que as ovelhas entraram e comeram tudo, o meu corpo, os ovos e o requeijão. Por ser muita coisa, as ovelhas todas morreram também, mas ninguém quis comê-las, pois as ovelhas eram amargas.
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sábado, 13 de fevereiro de 2010

Glory Box

Mulherzinha trágica, deve estar pensando. Fui embora naquele silêncio daqueles mesmos dias vazios, não sei se percebeu. Mas aqui estou, em um dizer cheio de pontos e vírgulas, uma pequena poesia, que seja carta, e começa assim.

Tive meu coração entre os dentes por todos estes dias. Minha puta feminilidade me destruindo, me colocando no lugar das heroínas românticas, uma heroína que por dias quase cometera a escrotice de raspar a cabeça e queimar todos os sutiãs.

Mas chega com esta tolice. Tudo que não integra ao meu corpo dilui na fumaça cuspida pelos automóveis. Eu, querendo descartar o meu ser para não sofrer mais, e sofrendo por não ser. Mas olhe lá fora, por mais que tocados pelo amarelo solar, os edifícios estão filtrados no cinza desta cidade feita de pessoas. Espero que seus dias tenham esta mesma neblina que também encobre aqui.

Esta carência negra, resquício de uma adolescência cheia de mágoas? É este véu que cobre os seus mais íntimos sentimentos?

Escrevo, e te vejo abaixar a cabeça, te vejo respirar fundo. Tão longe, café frio na xícara. Lápis e mais papéis. Engulo nicotina, é meio-dia, tenho até meia-noite, tenho uma manhã. E a lingerie é vermelha. E os papéis estão amassados por toda casa, sinto-me uma escritora.

Veja, estou bem aqui. Você se perdeu, fui parte deste labirinto, eu sei. A sua alma medrosa corria dos meus olhos cheios de paixão, e tudo apagando com o dobrar dos dias ociosos. Tento entender o que me fez apaixonar por você. Meu coração adormecido em seu colo, fui uma prostituta para seu corpo que se chamou mundo. Cegamente guiada pela sua voz, indo até o seu pênis, fazendo-o ejacular, deixando-me na metade do meu caminho. Então, abandonei-o.

Não mais poderia agüentar tanta solidão aí do seu lado. Este sentimento de dois, este sentimento igual a dois, este sentimento destruindo os dois corpos de uma só vez. E você, como está? Este seu estar, forte em sua distância, me fez somente cair querendo te tocar. Cansada de digladiar no escuro.

A imagem consumindo, corroída pela verdade, e eu brigando com o fundo obscuro da minha mente. O mundo é maior que o pote aonde estava meu coração, em cima da geladeira, debaixo da cama.

Chega! Meus caracteres acabariam por ti, eu sei. Mas pergunte ao silêncio de suas raras palavras o porquê de tanta camada de pele protegendo-o, se pele é o que menos importa em você, em mim. Então venha aqui e deixa-me triscar no frio de suas lágrimas.

Fim. Entendeu? Eu te amo. Se me ama, encontra-me pelo meu cheiro, amor.

Diário, ele veio, veio aqui e disse tudo na minha cara o que estava preso dentro de si. Retirou cada peça de roupa, despiu-se como se revelasse a sua alma atrás de todo aquele pano. Choramos junto, transamos na sala. Seu corpo não mais se esquiva, está de encaixe ao meu, houve tudo que palavras não ousam transmitir. E os dias, mãos dadas, a fumaça tenebrosa da cidade, os nossos corpos em brasa. E os outros dias, sua alma e o universo dele e o meu, duas peças. Entendo, como entendo, duas vidas.



Glory Box - Portishead
conto de 2008, tempos bons...

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Giz

Pensava com os olhos presos ao fundo do copo, o uísque quase no final, gelo derretido, lágrimas salgadas adoçando os lábios e manchando o balcão. Depois de um ano, ainda era possível sentir as mãos dele procurando algum lugar no corpo dela. Sentia-se patética ali, chorando por alguém que provavelmente naquele horário estaria numa cama confortavelmente trepando com outra mulher enquanto o casal protagonista da novela trocam aquelas juras de amor mais do que eternas. Mas ninguém sabe o que acontece depois do final feliz. Precisava de um ínicio e inícios dependiam de um fim. O dela era estar ali, comemorando um ano, olhando para o dedo com a marca imaginária de uma aliança, que apertava e doía nesses dias em que ela se deparava com a solidão de uma cama vazia.

O dedo girava dentro do copo vazio, brincando com o único cubo de gelo que sobrara quando ele se sentou ao seu lado, perfume de homem recém lavado e puro de qualquer pecado, fingindo muito bem que não notara as suas pernas bem torneadas de mulher feita que sabia usá-las com crueldade numa cama. Sorriram, os dentes dela, amarelo de anos que fazia questão de jamais ocultá-los, muitos tratamentos para que branqueassem mas no final, ela era fraca demais para o café que ele lhe trazia na sua cama e deixava o dia todo na garrafa térmica, a maneira dela de sempre estar com o gosto dele em sua boca salivando por um cigarro, acompanhante ideal; os dentes dele, de rapaz que usou por muito tempo aparelho e agora quer sorrir para todas as mulheres sem medo de denunciar a idade, que não era assim tão pouca, seus quase 24 anos, na lata. Assim, em como todos os bares onde uma mulher atraente e sozinha bebe uísque nacional ao lado de um rapaz jovial com muitos planos na cabeça mas nenhuma companhia, a história havia de seguir o roteiro original de conversas e desabafos do tipo"Hoje faz 1 ano da minha separação, foi muito fácil entende? Só precisamos assinar alguns papéis e éramos novamente livres para transar com qualquer outra pessoa. Não sinto falta dele, sabe, eu não lembro nem porque a gente se casou. Somos bons amigos, parceiros de truco ás vezes" " Não penso em me casar, sei lá, isso de ficar preso por pápeis, acorrentado pelo pé por uma aliança. Nem tenho idade prá isso, tenho? Quero só curtir a vida, conhecer mulheres como você" "Tá afim de ir lá em casa? Tem bebida e é de graça. E tem a minha companhia, a gente podia conversar mais sobre isso."

Mas não conversaram. Os dedos dele já foram procurando os botões da camisa dela e tão de repente, seus lábios mordiscavam os seios fartos dela, que controlavam seus dedos para não invadirem a calça dele, as unhas quase quebradas sobre o zíper semi aberto. Tentou beijá-la, mas não permitiu que ele a invadisse dessa maneira, tinha seu corpo a disposição de suaves e bruscas invasões, mas que não tocassem nos lábios que outrora foram de outro. Queria ainda ter o sabor de café da manhã, mesmo que muito tênue, em seus lábios. Única lembrança que lhe restara, as fotos foram picadas e queimadas numa típica atitude de mulher de meia idade infantil. Que ele se satisfazesse com os outros lábios.

Sorriram novamente. O dele um sorriso de agradecimento, o dela, satisfação.
Correu até a cozinha e brindou solitária por um ano. A geladeira refletia algo do seu corpo todo vermelho e suado. Sentiu-se orgulhosa, cada marquinha um troféu de consolação. E porque não, ligar e desejar que ele tivesse uma comemoração igualmente satisfatória?

Mas já passara da meia noite, não havia muito o que comemorar além de um garotão estendido na sua cama, gabando-se pelo feito de 5 vezes numa noite só. Expulsou-o da cama, com a promessa de que sua casa estaria sempre de portas abertas e sua cama sempre vazia. Mais um sorriso, desajeitado o dele, que nem sabia o nome dela, falso o dela, tudo mentira o que falara, queria ficar sozinha e dormir. Esquecer que gritou aquele nome, o dos convites de um casamento desfeito a um ano e que ninguém mais se lembrava que um dia existiu, só ela, com aquele orgulho ferido e fatiado, de noivinha largada ao pé do altar. Mulher esquecida e tragada nos lençóis doados ao exército da Salvação. Prometeu, como promete todos os anos que iria começar uma dieta e largar os cigarros na próxima semana, que amanhã esqueceria tudo o que se passara e começaria novamente, qualquer coisa que fosse. Já escrevera um final, não muito feliz, não muito convicente. Ótimo para um best-seller de bolso.


Acordou, e os dias estavam grudados no passado.
Escritos em giz.


(baseado em chão de giz, zé ramalho)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

35º e Chuva No Fim da Tarde

Acordei com dor de cabeça e não tinha nada para o café da manha. Desci a escada usando uma samba canção com desenhos de patinhos, liguei a TV... Assisti ao jornal. A previsão do tempo, 35 graus e chuva à tarde, enchente do dia anterior, dica de moda, os gols da rodada. Nada de engraçado. Nada de chocante.
Eu estava atrasado, escovei os dentes porcamente e vesti a mesma roupa do dia anterior, uma camiseta preta, velha, com o suvaco e a gola esbranquiçada, uma calça jeans e o all star verde.
Fui procurar emprego, jogar na mega sena e comprar uma raspadinha. Eu não estava me sentindo bem, mas já me senti pior. Voltei para casa quando o sol esquentou demais. Eu só tinha cerveja e vinho na geladeira. Porra, eu tenho que começar a comprar comida. Tomei um copo de água.
Minha mãe estava gritando comigo por algum motivo, eu estava sonhando acordado e fumando um Camel que achei no banco do ônibus. Ela tinha arranjado um trabalho para mim, era na feira... Na barraca dos peixes. Eu estava preocupado porque precisava atualizar o blog. Ela estava literalmente me pegando pelo pé e me arrastando para o buraco.
Eu soquei a parede e disse que eu ia ser pintor, poeta ou ventriloco... Não tinha talento para ser peixeiro. Eu disse que era artista e saí pulando pela sala como se fosse um bailarino. Ela bateu palmas, disse que eu era talentoso, porem era pobre. Me disse que Deus dava barba para quem não tem queixo. Tomei um litro de vinho e quebrei a garrafa na minha cabeça. Fiquei inconsciente por três dias, Mas acordei a tempo de ir trabalhar na barraca de peixe na feira de domingo.
Todo mundo fica me incomodando, falando do meu alcoolismo, eufemismo, tabagismo, fanatismo, alegria, anemia, lombalgia... Todos os dias reclamam da sujeira da cozinha... Vocês podiam me dar uma chance e me deixar em paz.


Frase Laranja da Quarta Feira:
"Aos seis anos eu queria ser cozinheiro. Aos sete eu queria ser Napoleão. E minha ambição foi crescendo nessa proporção desde então."
Salvador Dali

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Nada é tão estranho quanto uma boa dose de paraíso perdido

Um casal e tanto, como qualquer outro. Mas eles eram únicos. Eram poucas as mulheres que gostavam tanto dar o rabo, eram poucos os que curtiam tanto um cu. Os dois se rasgavam por dentro e saíam destruídos cada vez que transavam. Eram tarados, de marca maior, dois bandidos que acabariam presos.

Esse casal que sentava do lado da jukebox era uma comédia mesmo, pensei aqui com meus botões enquanto tentava escolher uma música. Martha, Sweet Sixteen, Make You Feel My Love, Rua Augusta, Surfin' Bird, não tem porra nenhuma aqui, não tem nada que nos pegue pelos intestinos ou que ao menos zoe da nossa cara? Bem, mas que seja, Legião Urbana nunca matou ninguém, acho que não. O casal do lado continuava falando sacanagem a rodo e se engolindo de maneira quase grotesca, eu tinha que sair dali, voltar para a minha mesa, porque eu vim para cá, porque eu vim comprar fichas, aposto que vou levar um bolo da mesma maneira que sempre levava, aposto que ela vai se atrasar da mesma maneira que se atrasava toda vez, vou te falar, é foda, mais foda do que eu posso conceber ou suportar, será que o problema era comigo, será que eu sou um inglês, eu que nunca gostei de pontualidade reclamando da falta da mesma, saí de perto, não aguentava mais, era muita felicidade para o meu gosto e acho que eu estou ficando com alergia, senti minha nuca coçar, senti as axilas pedindo para serem coçadas, como esse bar é estranho, como cheira mal, mais do que o usual, esse era o nosso ponto favorito, pé-sujo, vagabundo, combinava com a gente, ela chegou

e pedimos uma cerveja, duas, três, você não acha que essa porra vai esquentar, ela novamente me censurou por reclamar tanto, ela sempre fazia isso, ela parecia estar voltando de algum velório com aquele vestido preto e aquela cara emburrada e cinzenta, não que ela diferisse muito de antigamente, mas que diabos estava acontecendo com a gente será que nosso único destino possível meu dela e da humanidade inteira era de completar a metamorfose em velhos emburrados que enxergam o mundo preto e branco como em algum filme antigo, a diferença é que esses filmes antigos não eram pessimistas, esses filmes antigos sempre nos fizeram sorrir, aquelas comédias sem sentido, aqueles dramas chorosos que nos faziam ver como a vida é bela, eu deveria assistir algum filme pessimista de vez em quando só para contradizer minha visão de mundo, você já viu coisa mais ridícula, perguntei, o que, ela perguntou, aqueles dois ali do lado da jukebox, não chega a ser deprimente, ela se calou, talvez nossa mesa que fosse deprimente porque nossos rostos nem se tocavam mais, mas também o que eu queria, faziam muitos anos, não é mesmo,

Pois é,
Hã?
Deveria ir ao supermercado mais vezes. Parar de pedir para a vizinha fazer isso em troca de uns trocados. Encontro mais gente interessante
Interessante de verdade?
Como?
Ou que já foram interessantes, você sabe, nada é interessante para sempre, mas às vezes nós damos ao luxo de conversar, você sabe, por alguma educação, para não sermos mal falados, mas tenho essa impressão que nada é interessante a vida toda
E nem a vida toda é interessante. Mas nós continuamos acordando diariamente, você sabe como é.
Tem isqueiro?
Tenho.
(...)
Merci beaucoup

Mercy on me, ela deu para falar francês agora, o que uns anos afastados não fazem com a gente não é mesmo, agora ela deve estar vendo aqueles filmes em preto e branco chatos que nem o inferno, você se lembra, do quê, daquela vez que descemos do táxi porque ele não sabia o caminho e não queríamos ficar rondando pela noite e pagar por isso, e aí começou a chover, mas estávamos sem guarda chuva, um mendigo deu um guarda chuva todo quebrado para a gente, eu saí imitando o Gene Kelly, você estava muito bêbado não é, nós estávamos, lembra que você pulou nas minhas costas e nós dois fomos ao chão, o que eu posso fazer não é mesmo, não sou um homem muito forte

Sabe,

O que, nunca imaginei como seria nosso reencontro, sempre tive uns pressentimentos sinistros, acho que você parou de tomar remédio não é, ah sim, como não, agora meu único remédio é a cerveja, graças a deus, a tarja preta que se foda, sim, um brinde ao fim da tarja preta no mundo, meu tio disse que esses remédios fazem o cabelo cair, seu tio que tem obsessão pelo apocalipse, não, aquele outro, o careca, (nós dois rimos), nem acredito que aquele casal foi embora, no que eles te incomodavam, ah nada demais, mas sabe, tinha muita vitalidade neles, eram dois animais, não devem ter um pingo de porra nenhuma nas cabeças, lembra quando fazíamos isso, lembro, não era bom, era, é sempre muito bom agir como dois animais excitados em público, tipo aquela nossa transa na estrada não é, pois é

Quando a gente não fazia isso também era bom, lembra madruga adentro assistindo Seinfe... Ela olhou para o relógio e a frase morreu no ar e eu tive que acender um cigarro em homenagem a isso e ela voltou a erguer o olhar para mim deu um sorrisinho amarelo e disse que já precisava ir embora, antes de ficar bêbada, antes de tomar pito, antes de fazer o que não queria, mas você não quer nem conver... não, ela levantou-se, meus olhos fixaram no seu decote, tudo continuava firme e eu continuava caindo, e nossos lábios se encostaram e ela foi embora, fazer o que, desocupei a mesa, sentei no balcão, olhei em volta, pedi uma vodka, não volto para casa sóbrio hoje, quando voltei, não sei, mas ajuda a enfrentar os dias que eu não bebo, sabe como é

nossa, como a noite tá fria!
perdão?
frio.
ah sim.

Grandes cabelos, peitos pequenos, uma calça jeans justíssima, voz de cão sem dono, nós não somos mais cães raivosos, somos dois palookas, como diria o velho Tom

você sabe que...
desculpa, esse papo não vai levar a lugar nenhum
talvez eu escreva um conto a respeito disso
sei, sei, mais um daqueles repetecos sem tesão nenhum, que não dizem nada, que são mal escritos...
pois é, não devem ser nem literaturas
você me deprime, sabia?
talvez, meu apelido já foi cão sarnento, por que será que eu te deprimo...
você é uma pessoa triste
sou
você acredita em deus?
stricto sensu, não
hein?
pra mim ele é um pobre diabo que tomou umas biritas
deus é uma idéia na mente do diabo?
deve ser, ninguém é escroto o tempo todo, nem o diabo, eu ainda acredito que ele deva ser um cara legal
olha, não aguento mais esse papo
talvez você tenha a sarna de viver, também
não me acuse
não acuso; constato, que coisa não
esse já é o terceiro bar que eu paro e o terceiro que eu encontro algum inútil que só fala papo furado
suas reações me dizem o contrário, elas quase me dão razão
quase?
mulheres não me dão razão
(ela riu) mas que diabos é isso
talvez nós não tenhamos sarna... talvez só sejamos estranhos... e talvez só um palooka que pode reconhecer o outro
palooka?
palooka. está chovendo, você quer andar? podemos... cantar na chuva...
você é deprimente... palooka. mas você também sabe das coisas.
só o suficiente para não ser um idiota, quer um conhaque?
quero, se vamos andar, se vamos trepar, e se daqui pra frente falaremos mais merda do que já estamos falando aqui
du rien.
o quê?
é francês

Ela riu, eu sorri amarelo, enchemos a cara, e ela agarrou-se ao meu braço... dois perfeitos estranhos... mais uma vez...

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O Bloco Humano

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Carnaval é dia de coisa podre. De muita gente suada e música alta tocando pela cidade. Foda-se se você não gosta de samba. É carnaval. Ele vem e te invade, não há nada a ser feito. Ele toma o país como uma peste. Temos somente de aceitá-lo, sem lutar muito para não sofrermos ainda mais. E ai de quem não o acolher. Sofrerá a maior das dores sociais. Será excluído e considerado alheio às atividades das pessoas normais. Mas com algum esforço podemos fingir bem, sem que os fiscais nos repreendam.

-Vamos para a Lapa. Vai ter mulher pra caralho.
-Tem mulher em todos os lugares.
-Sim, mas lá vão ter muitas, e querendo sexo. Sexo fácil.
-Todas as mulheres querem sexo, umas mais, outras menos.
-No carnaval é bem mais fácil, todas as travas sociais femininas vão por água abaixo.
-Mas eu vou ter que aturar aquela música; e aquelas pessoas bebadas e nojentas.
-É o preço que se paga.

Chegamos na Lapa. A rua está meio vazia, pelo menos para um dia de pré-carnaval. Há muitos policias, e pessoas gritando. Brigas de mulheres, e pitboys correndo atrás de pivetes para lhes dar porrada. E o som. Muito quente também. Assim que botei os pés na rua já estava ensopado. Aquele som, todas aquelas vozes berrando. E a música. Pelo menos tinham uns rocks e funks tocando pelos bares.

Andamos e nos encontramos com algumas pessoas que nos aguardavam.

-Vamos, o bloco fica naquela direção.

Andamos e andamos, mas nada de bloco. Depois de caminhar em meio aos bêbados, travestis, seres indefiníveis, homens bombados até a alma, mulheres sem travas sociais, bosta, vômito e fedor, resolvemos nos comunicar com outros aventureiros já anteriormente alocados no ambiente hostil.

-Ele disse que o bloco é na Rua do Lavradio.

Caminhamos mais até encontrar a tal rua; e com ela a multidão. O bloco; O Bloco Humano. As pessoas se juntam o máximo possível e permitido dentro de limites higiênicos coletivamente pré-programados em seus inconscientes. E conduzindo o transe coletivo , o som. O som que dita o ritmo cadenciado dos corpos no espaço, mesmo que este seja ínfimo. Me pergunto por que não faço parte desse transe induzido. Será que tomaram algo? Certamente, mas nada que eu não tivesse ingerido. O liquido dourado e gelado, lubrificante social. Cerveja, para os menos íntimos.

Mas havia algo mais, algo que conectava as mentes hipnotizadas de forma embriagante; algo que não se pode ver nem tocar. Uma reação coletiva sem explicação. Se tentassem emular de alguma forma não daria certo, há de ser espontânea. Seja talvez este o poder do Bloco Humano: criar essa eletricidade sociologicamente perceptível, mas não compreensível.

-Isso aqui está um saco.
-Ah, cara, deixa de ser um chato!

Calor, calor, som, o som, gritos. Esse cheiro de sovaco e suor está começando a me incomodar. Me pergunto como o transe coletivo consegue se manter por tanto tempo. Não há nada que quebre o seu encanto? Talvez essa mistura dos sons, cheiros, ritmos, e gostos seja um tanto poderosa. Somente alguém alheio à realidade paralela deste encontro para conseguir se desvencilhar do transe.

-, to meio cansado, acho que vou embora.

Os outros me olham sem compreender o sentido de minhas breves palavras. Seus olhares vazios e impessoais revelam a força do transe a que estão submetidos. Ainda tento elaborar em cima do que disse, expondo razões mais concretas como o fato de estar com dor nos pés, ou estar ficando com sono, o que não adianta de nada. Seus rostos mantêm a mesma expressão de confusão como se estivessem ouvindo um animal que tenta sem sucesso estabelecer comunicação racional com humanos. Já desesperançoso em ser compreendido, me afasto poucos momentos depois. Aos poucos vou me distanciando do Bloco Humano, e assim, reencontrando pessoas que aparentam estar na mesma realidade que a minha.

-Opa, e aí, acho que já vou indo pra casa. E vocês?
-Nós vamos para o bloco. Claro.

Incrível. A força magnética do Bloco Humano é imensa, capaz de capturar pessoas a uma grande distancia de seu centro, como um poderoso buraco negro faria com a poeira espacial das redondezas. Vejo meus conhecidos marchando sonambulicamente em direção ao Bloco, acompanhando o ritmo dantesco que ecoa pelo ar, originando essa dança diabólica que impregna os corpos em movimento.

Lá vou eu caminhando em direção à minha casa. Já vejo agora os primeiros raios de sol da manhã que se anuncia. Ao longe posso ver que juntamente com a chegada da luz, o Bloco começa a se dispersar. Talvez este seja o antídoto para o despertar.
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sábado, 6 de fevereiro de 2010

Para Fechar Olhos

Não fecho os meus olhos há seis meses. Há seis meses não sei o que é escurecer. Vejo tudo e não vejo nada. Um mar morto pousa frio nas minhas vistas dilatadas, sinto o seu gosto plástico quando transborda e alcança o meu sexo também dilatado, esse mar tem a função besta de ainda dar vida a essa gelatina, ovos cozidos eles dizem e tentam simpatias, orações, agulha, grampeador, mas eles somente tentam, fecham as janelas para me confortar. O que sempre me cobriu nunca foi sentido que ali um dia esteve, e não faz falta, ainda tenho dentes.

Meus dentes caem como dados no asfalto. Chão frio, ar quente. Não preciso descrever para entender. Primeira martelada e os dentes no chão, justamente os meus? Aqueles em que obstinado mastigava o meu cigarro, o meu fardo, meu isopor. Por enquanto, o meu coração fica no armário, junto com os dardos, guardo como caixinhas de música que não tenho. Três dentes levam os demais firmes também ao chão. Já sentiu esse gosto? Perco os meus dentes como os fortes perdem a cabeça. As sobras tocam o chão e já rendidas sem raízes seguem, caminham embriagadas no asfalto e se escondem dos carros como temessem a vida que não possuem. O mar morto em meus olhos se desprende tão quente como lava até tocar o meu.

Que martelado se destroça na mão de quem me mutila aos poucos. Então porque não foge? Deixa assim, fazerem o que quiserem com o que queiram. Não importa. Minha cabeça é baixa, mais baixa de quem levanta o martelo e afunda a última orelha que me sobra. Não tenho força o suficiente para martelar alguém e me livrar desse poço. Ainda persisto. Tento o grito, mas aqui dentro o vazio faz ecoar somente algo fino rebatendo pelas vastas dimensões ainda ocultas. Por mim? Mentira. Essa mão lá fora aproveita o silêncio feito na minha cabeça e bate com força de rinoceronte em cada dedo do pé, o asfalto se racha e com a luz do poste apagada vira um mar de piche onde tonto de dor mergulho. Há ainda um corpo que limita, um espaço para dor, uma medição de fronteiras, o sinto formigando com a dor o ultrapassando e agora sim posso dormir com pregos.

Então aproveita para me prender de vez a minha cama de pregos, aprofundando a pele que resistiu no metal frio abrindo cada lasca sem gota de sangue para amenizar. Para cada batida um último suspiro. O que fica é o que desprende, mais forte, ainda se mantém. Para enfim, com a última martelada, eu já preso entre os pregos, meus olhos sorrirem em paz e se fecharem, por dentro, tudo se fechando, caixa entre caixas, para logo mais o último fiapo de luz cansar e se apagar. Nada mais falta.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Novela II



Edivaldo Badinbed ganhou esse apelido quando uma ex espalhou o boato de que ele não era o garanhão que ele dizia ser. Inclusive ele diz coisas demais, é um falastrão de marca maior. A mãe dele era uma polonesa maluca e tinha estragado sua vida, seu pai era um rato de esgoto que sumiu antes dele nascer.

Fazia cinco meses que eu estava na grande São Paulo e um mês que eu estava dividindo apartamento com Badinbed. Tinha vendido meu carro então não passei fome em momento algum apesar de não ter arranjado emprego e como eu pagava menos no aluguel (já que ele tem um quarto enquanto eu durmo no sofá de dois lugares) ainda tinha algum dinheiro guardado. Bad saia com Margarida, ela com seios moles, olhos fundos, fio de cabelo braço de 10 centímetros aos 23 anos de idade... Mas o que me chamava a atenção eram aquelas mãos finas com dedos longos e magros, dava para ver o formato de cada ossinho. Alem disso eram extremamente brancas, parecia que ela as guardava em um pote de água sanitária e só as usava quando saia de casa.

Eu era sempre fui entediado, mas Badinbed sempre procurava um jeito novo de me entediar... Então inventou de dar uma festa para comemorar meu primeiro mês no apartamento. Na verdade ele só queria dar uma festa. Na verdade ele só estava inventando um motivo para eu comprar bebida. Eu era inconstante demais e só tinha aprendido a lidar com pessoas há uns dois anos atrás, por isso não tinha amigos. Edivaldo chamou umas oito pessoas, todos bêbados metidos à intelectuais e vice versa. Eu estava com um puta mau humor e só conhecia dois dos convidados.

Samuel era gago... Por isso era conhecido por Mumu e namorava Camila que não era ninguém. Ela dizia que o melhor sexo oral que ela já teve havia sido proporcionado por Mumu e ele atribuía isso ao fato dele ser gago, e isso era tudo que eu sabia dos dois, pois a única vez que eu tentei conversar com eles fiquei de saco cheio. Mumu demorava 45 minutos para terminar uma frase e Camila não tinha nada para dizer por que não era ninguém. Os outros convidados eram: Um cara careca, um cara de moicano e terno, um cara barbudo de sapato branco e chapéu panamá, um boliviano que fumava charuto, uma garota feia de cabelo roxo e piercing e outra garota bem gostosa que não me dirigiu nenhuma palavra ou olhar a noite toda.

A festa começou normal... Tocou B-52, Pearl Jam, Los Hermanos, Bezerra da Silva e sei lá mais o que... Tínhamos boa cerveja na geladeira e uma garrafa de vodca aberta em cima da pia. Antes do fim da primeira meia hora eu cansei de ficar deslocado dos assuntos chatos (cadeiras, Dostoievski, tipos de passarinhos, traumas sexuais, José Sarney, etc). Saí de lá e fiquei na frente da TV o resto da noite... Naquela hora estava passando “Nos Embalos de Sábado a Noite”. Umas três da madrugada Margarida (que eu chamava de Magrida e culpava um falso problema de dicção) brigou com a feiosa de cabelo roxo porque não gostava de Chico Buarque e foi para perto de onde eu estava. Ela com 1,68m, cabelo manchado e despenteado estava colocando aqueles dedos magrelos e albinos nos meus discos. Eu prontamente peguei um sapato e joguei com toda a força em seu pescoço. Ela saiu xingando e correndo com aquelas pernas ossudas. Lá pelas quatro e meia da manhã o povo intelectual/bêbado foi embora. Eu estava no meu sofá assistindo Friends. Bad estava dormindo no tapete do banheiro. Magrida o pegou e foi para o quarto.

Acordei umas onze e meia... Magrida tinha cagado dentro do sapato que eu havia jogado nela. O sapato era do Bad então o coloquei do lado da cama dele e não me importei com aquilo.

Badinbed acordou, pisou na merda, reclamou pra caralho e vomitou na cozinha... Não me importei. Saí de casa e vi Magrida tomando café numa lanchonete perto de onde moro. Ela pediu desculpa pelo sapato e disse que não ia mais sair com Edivaldo porque “ele não fazia seu tipo”.

Magrida é formada em biologia, ganha três mil e quinhentos por mês, mora sozinha e quer ser comida nove vezes por semana... Mesmo assim era burra o bastante para tentar ter uma relação com um cara chamado Badinbed.




Frase Laranja da Quarta Feira:
"Serei tão breve que na verdade já terminei"
Salvador Dali ao proferir um discurso em uma solenidade.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Sob o céu de janeiro

-Seus olhos no céu ácido.
-Sua pele no asfalto que arde
-Seus lábios naquela dose de alguma coisa qualquer
-Sua língua nesse cigarro qualquer que fumei
-Vou chamar o sol de você
-Vou chamar a lua de você
-Encontrei pureza em cada puta quando lembrei de você
-Encontrei amor em cada homem com quem me deitei quando lembrei de você
-Sua boceta em cada pau
-Seu pau em cada boceta
-Seu pulso em meu pulso
-Minhas lágrimas em suas lágrimas
-Bob Dylan ouvindo você
-Beatles ouvindo você
-Você nos meus comprimidos sorridentes
-Você na minha agulha mágica
-Em vida
-Na morte

Estendidos na calçada com o olhar fixo um no outro sob o céu macio de Janeiro. A última palavra em seus lábios prevaleceu